"História
Alternativa":
Live no
Café Especulativo
202204232359P7 – 22.569 D.V.
“Portugal publicou mais obras de história alternativa
do que o Brasil, porém, o Brasil publicou mais narrativas de história alternativa
escritas por autores lusófonos do que Portugal.”
[Aos 29 minutos da live]
“Alguns
dos meus detratores, estudiosos de ficção científica, diziam que a Carla escrevia
melhor do que eu”
[Aos 150 minutos da live]
“Não tenho nada contra spoiler. Eu até gosto!”
[Paola De Marco, aos 173 minutos da live]
Acabo de sair
da live “História Alternativa” no canal Café Especulativo, mantido
por meu amigo, o filósofo e estudioso de ficção científica, Edgar Smaniotto,
com apoio de outros dois amigos, Paulo Elache Duarte e Carlos Relva. Conforme o planejado, o evento se iniciou às
21h00 deste sábado e se prolongou por mais de três horas divertidas e gratificantes,
porque não é todo dia que tenho oportunidade de conversar sobre FC, processo
criativo e literatura em geral com sujeitos que, além de bons amigos, são especialistas
com muita leitura no e sobre o assunto.
Chamada para a live “História Alternativa”.
* * *
Ao longo da live,
fiz-me acompanhar por uma garrafa de Boscato Cave Merlot 2019. Porém, com a animação do bate-papo, confesso não
ter passado da primeira taça.
Segue abaixo,
o link do YouTube para quem não pôde assistir ao vivo e desejar dar uma
conferida, ou para aqueles que quiserem rever um ou outro trecho da live:
https://www.youtube.com/watch?v=kwAh2dz5LLk
* *
*
Embora nosso
bate-papo tenha abarcado uns poucos tópicos alheios às histórias alternativas,
tentamos, à medida do possível, manter o foco nas narrativas e nuances do subgênero,
com graus de sucesso variáveis ao longo dos cento e oitenta e um minutos do
evento.
Ao me
apresentar, Edgar falou sobre meu livro de não ficção, Cenários de História Alternativa
(Amazon, 2019), que tive oportunidade de citar diversas vezes ao longo da live,
e Carlos saudou a plateia com o “vida próspera e longa”, gesto e saudação vulcanas
alternativas, se duvidar, oriundas do universo-espelho criado no episódio “Mirror,
Mirror” da série original de Jornada nas
Estrelas.
Ao longo de
toda a live, quase que sem querendo, ironizamos a questão dos spoilers. Só um pouquinho.
A pedido do anfitrião,
delineei o início da minha carreira literária, primeiro como leitor ávido de ficção
científica, associando meus primeiros escritos publicáveis às submissões que
apresentei aos boletins do saudoso Clube de Ficção Científica Antares e para o Somnium,
fanzine (hoje uma revista digital) do Clube de Leitores de Ficção Científica. Com isto, pude falar também dos fanzines da década
de 1980. Então, passei à minha estreia
profissional com a publicação do conto de FC “Xenopsicólogos na Fase Crítica”
na revista francesa Antàres e a
estreia no Brasil com a publicação das noveletas “Alienígenas Mitológicos”
(julho de 1991) e “A Ética da Traição” (janeiro de 1993) da edição brasileira
da Asimov’s. Daí, falei sobre a motivação
para escrever essa segunda noveleta, que acabou sendo a primeira narrativa de história
alternativa que publiquei em minha carreira.
Nesse instante, Paulo Elache mostrou a capa da Isaac Asimov Magazine
25, inspirada em “A Ética da Traição”, cuja ação se passa inteiramente a bordo
de uma barcaza nuclear paraguaia.[1] Enfim, procurei distinguir história alternativa
de história contrafactual, conceituando a primeira como a expressão ficcional
da especulação histórica, ao passo que a última é a expressão não ficcional. Isto posto, procurei distinguir os ensaios
contrafactuais propriamente ditos dos contos de história alternativa escritos
sob a forma de pseudofactuais e exemplifiquei com o conto clássico “If Lee Had
Not Won the Battle of Gettysburg”, de Winston Churchill. Concluí essa fala inicial citando Ab Urb
Condita do Tito Lívio e The Napoleon Apocryphal (Black Coat Press,
2016)[2],
de Louis Geoffroy, como textos seminais das histórias contrafactuais e
alternativas, respectivamente.
* *
*
Ao contrário
de várias outras lives de que participei, o Café Especulativo
exibe uma postura informal que considero altamente positiva, que é a de submeter
questões da plateia virtual assistindo ao evento aos participantes ao longo das
falas desses e não apenas ao fim de suas participações formais.
Dessa forma, o
pesquisador Alexander Meireles, responsável pelo canal Fantasticursos,
indagou-me sobre qual seria o pecado principal na escrita do subgênero. Em primeiro lugar, pelo fato de já estar com a
mão na massa, por assim dizer, citei o pecado cometido por Veiga em A Casca da
Serpente: o autor não deve mudar a personalidade da figura histórica envolvida
com a divergência, ou seja, Antônio Conselheiro não pode se tornar um democrata
convicto e um ateu de mente aberta, para além de um líder bonachão e
libertário. Outro pecado ou roubalheira
que citei foi a persistência de figuras históricas quase idênticas às
existentes em nossa linha temporal séculos após o ponto de divergência. Uma terceira roubalheira mencionada foi o
emprego de personagens da literatura criados por outros autores como se fossem
figuras históricas alternativas, prática que acaba contaminando a narrativa de história
alternativa com aromas e sabores mais típicos da ficção alternativa. Nesse ponto, aos vinte e quatro minutos de gravação,
aproveitei o ensejo para conceituar brevemente o subgênero da ficção alternativa. E, finalmente, o quarto pecado, que é
empregar mais de um ponto de divergência numa mesma narrativa de história alternativa,
citando o exemplo de Harry Harrison, no romance A Transatlantic Tunnel, Hurrah!
(Ballantine-Del Rey, 1991).[3] Após essa citação, Paulo Elache mostrou as
capas de vários livros de história alternativa publicados em português, dentre
os quais a antologia Phantastica Brasiliana (Ano-Luz, 2000)[4],
que organizei com Carlos Orsi para a editora de que éramos sócios. Comentei que, embora não fosse uma antologia
de história alternativa stricto sensu, cinco das onze narrativas
constituem, sim, H.A.
Capa aberta da antologia Phantastica Brasiliana, elaborada por Cesar R.T. Silva.
* *
*
Do chat da plateia,
Alexander indagou sobre as obras fundamentais do subgênero. Atendo-me ao que existe publicado em português,
comecei falando sobre o que foi publicado em Portugal, citando o clockpunk
(protosteampunnk em que os avanços tecnológicos precoces se dão no Renascimento)
A Invenção de Leonardo (Saída de Emergência, 2005)[5],
de Paul J. McAuley; e O Dilema de Shakespeare (Saída de Emergência, 2006)[6],
de Harry Turtledove. Edgar se lembra do
romance fix-up desse mesmo autor, Agent of Byzantium (Worldwide, 1988),
publicada em Portugal no bojo da Coleção Argonauta e que, em sua essência,
mostra seis histórias de contraespionagem bizantina protagonizadas pelo agente
secreto do Império Romano Oriental, Basil Argyros, num passado alternativo onde
o Islamismo jamais existiu e Constantinopla reconquistou todos os territórios
romanos perdidos para os bárbaros.
Dentre as
narrativas publicadas no Brasil, citei os romances de Segundas Guerras
Alternativas O Homem do Castelo Alto (Brasiliense, 1985) de Philip K.
Dick e Pátria Amada (Record, 1993)[7]
de Robert Harris. O primeiro virou a
série homônima na Amazon Prime e o último virou o filme de história alternativa
Nação do Medo (1994).
Após as citações
mencionadas, Elache me pediu para conceituar as diferenças entre mundos paralelos
e linhas históricas alternativas. Expliquei
que, embora uma LHA possa eventualmente se situar num planeta Terra de uma “dimensão”
paralela à nossa, isto não precisa necessariamente ocorrer. Para corroborar esse ponto, citei o romance Ring
Around the Sun (1953) do meu autor favorito, Clifford D. Simak , como
exemplo de mundos paralelos sem história alternativa, e também o romance de
portais dimensionais, Cowboy Angels (Gollancz, 2008)[8],
de Paul J. McAuley, então, especulei que esse último autor talvez se tivesse
inspirado na série que congrega as narrativas da Paratime, do H. Beam Piper.
* *
*
Retomando a vertente
dos subgêneros punk, Carlos Relva lembrou que havia escrito um conto de clockpunk,
“Franksteam & Electrônia”, publicado na antologia Erótica Steampunk
(Ornitorrinco, 2013), organizada pela Tatiana Ruiz, trabalho que comentei em
meu Cenários de História Alternativa.
Relva indagou se steampunk sempre é história alternativa e eu respondi
que “quase sempre, sim”. Aproveitei o ensejo
para, num exercício notável de contrapropaganda, recomendar a aquisição da edição
em e-book do meu livro (vinte reais), em detrimento da edição impressa (acima
de duzentos reais).
Em seguida, Carlos
elogiou um site antigo que eu mantinha na finada (?) Geocities, Plausibilidade
Científica e Literária. Daí, lembrei
que ele era mantido pelo Hidemberg Alves da Frota que, inclusive, estava presente
na plateia virtual. Bola levantada,
ingressamos num debate sobre se o site ainda estaria ou não no ar. Hidemberg ainda mencionou que esse site teria
ajudado a pesquisadora norte-americana Mary Elizabeth “Libby” Ginway a conhecer
melhor a FCB. Bem, aos interessados na arqueologia
da FCB, o endereço atual do site é: https://members.tripod.com/~gerson_lodi/.
Também voltou
à baila a questão de se as narrativas de Randall Garrett ambientadas na linha histórica
alternativa que ele criou para o romance Too
Many Magicians (1966) seria ou não história alternativa. Advoguei que tramas históricas alternativas
que admitem a existência de elfos ou dragões, ou ainda, defendem a
possibilidade da magia e da feitiçaria funcionarem se passam em verdade em
universos paralelos com leis físicas diferentes das reinantes em nosso próprio universo,
onde, sabidamente, a magia, a astrologia e a homeopatia não funcionam.
Edgar
perguntou se a invasão alienígena em plena Segunda Guerra Mundial, proposta por
Harry Turtledove em sua série WorldWar
e a invasão dos marcianos de Wells durante a Primeira Guerra Mundial exibida no
filme pseudofactual A Grande Guerra Marciana seriam história alternativa. Defendi que os romances de Turtledove na WorldWar são H.A. bona fide, ao
passo que o filme da invasão marciana alternativa é ficção alternativa. Elache aproveitou a oportunidade para citar o
mockmentário C.S.A.: The Confederate States of America, que baixei enquanto
escrevo esta crônica.
Rodrigo Fernandes
indagou se “universo alternativo não seria simplesmente ficção”? Repliquei que, em certa medida, toda ficção está
embutida em seu próprio universo ficcional, que pode ser mais ou menos
semelhante ao “nosso universo real”, seja lá o que essa última expressão signifique.
* *
*
Por volta dos
setenta e cinco minutos de transmissão, confirmamos que o universo-espelho da
franquia Jornada nas Estrelas é
realmente ficção alternativa. Da série Enterprise,
dentro dessa mesma franquia, lembramos do conceito de Guerra Fria Temporal e,
dali para as patrulhas temporais – clássicas como a do Poul Anderson e alternativas,
como as do Fred Saberhagen e do John Brunner – foi um pulo! Procurei diferenciar esses dois tipos de
patrulha temporal: a primeira luta para manter nossa linha histórica enquanto a
última se esforça para manter uma linha alternativa qualquer que não a
nossa. Das PT, mencionamos os enredos de
guerra temporal, com destaque para o romance A História é Outra (Expressão
e Cultura, 1973)[9]
do Fritz Leiber e a novela É Assim que se Perde a Guerra do Tempo (Companhia
das Letras, 2020)[10]
de Amal El-Mohtar & Max Gladstone.
Daí,
rediscutimos até que ponto uma informação é spoiler ou não e a
possibilidade de que enredos de ficção científica com elementos datados acabem
parecidos com histórias alternativas. Estabeleci
um paralelo com os romances históricos. Escrava
Isaura, por exemplo, não é um romance histórico. Porque, na época em que foi escrito, havia escravidão
no Brasil. Era um romance ambientado em
sua própria época, lido e apreciado, inclusive, por Dom Pedro II.
Aos oitenta e
sete minutos do certame, Elache mostrou outros romances de história alternativa
publicados em português, como o presente alternativo Associação Judaica de Polícia
(Companhia das Letras, 2009) do Michael Chabon; a história natural
alternativa A Oeste do Eden (Gradiva, 1986) do Harry Harrison; e A
Máquina Diferencial (Aleph, 2015) de William Gibson & Bruce Sterling.
Então, Elache
me instigou a falar sobre minhas próprias histórias alternativas ao exibir a
capa da Isaac Asimov Magazine # 25, edição que publicou minha noveleta “A
Ética da Traição”. Falei um pouco sobre
a gênese dessa narrativa de presente alternativo, escrita em 1990 para o
Concurso Jeronymo Monteiro, certame patrocinado pela Record, a editora responsável
pela IAM, e enfim publicada em janeiro de 1993, com ênfase ao mapa da América
do Sul que desenhei para melhor estabelecer essa linha histórica alternativa. Frisei que, ao contrário de “A Ética da Traição”,
a noveleta “Crimes Patrióticos”, ambientada na mesma LHA, constitui uma
narrativa de passado alternativo. Carlos
comentou que, embora escrita há mais de trinta anos, “A Ética da Traição”
permanece bastante atual em seu questionamento do racismo.
E-book A Ética da Traição.
A partir de
uma pergunta do Hidemberg, falamos um pouco sobre as narrativas de Impérios do
Brasil Alternativos. Citei en passant
os trabalhos dos autores brasileiros que já abordaram essa subtemática, como Ataíde
Tartari em “Folha Imperial” e Carlos Orsi em “Não Mais”, ambos publicados na
antologia Phantastica Brasiliana; Cirilo Lemos em “Auto de Extermínio” e
Sid Castro em “Cobra de Fogo”, ambos publicados em Dieselpunk: Arquivos
confidenciais de uma bela época; Eric Novello em “”, publicado em Vaporpunk:
Relatos steampunk publicados sob as ordens de Suas Majestades; e este que aqui
escreve, em “Primos de Além-Mar”, publicado em A República Nunca Existiu!. Questionei se essa não estaria prestes a se
tornar a preferência nacional brasileira, assim como as Inglaterras Católicas são
a preferência nacional dos autores britânicos e as Guerras de Secessão Alternativas
constituem a dos norte-americanos.
Carlos Relva
indagou se meu conto “Terra Brasilis”, publicado na antologia 2013: Ano Um
(Ornitorrinco, 2012), organizada por Alícia Azevedo & Daniel Borba, seria história
alternativa. Expliquei que não era o
caso e, aos cento e três minutos de transmissão, acabei ventilando um pouco do projeto
da coletânea escrita a quatro mãos com Luiz Felipe Vasques com contos e
noveletas ambientados nesse universo ficcional.
Delineei as premissas básicas desse enredo, que se baseiam no
desaparecimento de todos os sinais da presença humana na Terra fora das
fronteiras brasileiras. Também afirmei
que o enigma do desaparecimento do resto da humanidade não será desvendado
nessa antologia.
Da plateia, Paola
De Marco indaga se Douglas Adams já havia escrito algo em termos de história alternativa. Respondi que, tanto quanto eu saiba, não. Mais tarde, ela perguntaria o mesmo sobre a
Ursula K. Le Guin. Outra negativa. Comentei que a maioria das narrativas de ficção
científica dessa autora foi ambientada no universo ficcional dos Ekumen, que propõe uma origem comum
extraterrestre para todas as espécies humanoides de nossa vizinhança galáctica,
proposição segundo a qual a própria Terra não passaria de uma colônia perdida.[11] Isto nos levou ao conceito de “ansível”, criado
pela Le Guin, além de outros conceitos compartilhados na FC, como os de “hiperespaço”
e “Três Leis da Robótica”.
Neste ponto,
aos cento e nove minutos, divagamos e começamos a falar de seriados japoneses
das décadas de 1960 e 1970, com ênfase em National Kid; Goldar: os
Vingadores do Espaço; Ultraman; e Robô Gigante.[12] Para tentar nos trazer de volta, se não ao
tema da live, pelo menos à literatura de ficção científica, Elache
mostrou a capa da Isaac Asimov Magazine # 15, inspirada em minha
noveleta de FC hard escrita sob a forma de artigo de divulgação científica, “Alienígenas
Mitológicos”. Comentei que, embora à
primeira vista não parecesse, essa narrativa é ambientada no universo ficcional
Tramas de Ahapooka, o mesmo dos
romances A Guardiã da Memória e Octopusgarden, e da noveleta “A
Filha do Predador”.
Capa da Isaac Asimov Magazine # 15 inspirada em “Alienígenas Mitológicos”.
* * *
Bastante ativo
e animado nesta live, Hidemberg indagou se, na linha histórica alternativa
Pax Paraguaya, ainda existiria um
sentimento de brasilidade nos territórios anteriormente pertencentes ao Império
que haviam sido incorporados à Gran República del Paraguay. Confessei que essa questão foi abordada muito
de passagem, quando mencionei em “A Ética da Traição” que no Protetorado del
Mato Grueso ainda haveria cidadãos que teimavam em falar português em vez do castelhano. Porém, ventilei que a questão da brasilidade
era mais bem abordada no conto inédito escrito nessa LHA, “Se o Brasil Houvesse
Vencido a Guerra do Paraguay”, protagonizado pelo mesmo professor nobelista,
Albuquerque Vieira, do presente alternativo original.
Hide também perguntou
se a novela de passado alternativo “O Vampiro de Nova Holanda” se inseriria na
linha histórica alternativa Pax Paraguaya. Esclareci que as aventuras do filho-da-noite
Dentes Compridos se inserem noutra LHA, a Três
Brasis. Nessa oportunidade, aos
cento e trinta e seis minutos, aproveitei para falar das diferenças entre as
duas edições da minha coletânea de história alternativa, a Outros Brasis. A edição da Papel & Virtual (2000) além de
dois trabalhos da Três Brasis, “O
Vampiro de Nova Holanda” e “Assessor para Assuntos Fúnebres” e das duas
noveletas da Pax Paraguaya
supracitadas, contém uma quinta narrativa, a noveleta de futuro alternativo “O Preço
da Sanidade”, com um enredo com elementos de debunking ufológico, cujo
ponto de divergência é a vitória de Lula na eleição presidencial que disputou
contra Fernando Collor de Mello em 1989.
Hide, inclusive, lembrou de algo que eu havia momentaneamente esquecido:
“O Preço da Sanidade” foi publicada profissionalmente em Portugal, no bojo da
minha coletânea, Outras Histórias... (Editorial Caminho, 1997).
Aos cento e
quarenta e cinco minutos, Hide indagou se eu ainda continuava escrevendo sob o pseudônimo
feminino de Carla Cristina Pereira, ou se a “moça” se aposentara. Expliquei meus motivos pragmáticos para tê-la
“descontinuado”. Basicamente, exterminei-a
a fim de incorporar seus trabalhos e premiações ao meu currículo profissional. Falei um pouco sobre “os tempos em que fui Carla”
que, aliás, é o título de um ensaio que usei como introdução da minha coletânea
Histórias de Ficção Científica por Carla Cristina Pereira (Draco, 2012). Também confessei que minha esposa e minha irmã
costumavam afirmar que eu escrevia melhor como Carla do que como Gerson. Enfim, lembrei que Carla escreveu uma
noveleta para o U.F. Intempol, “Clandestina
Candente de Cosa”, uma espécie de crossing-over entre a patrulha
temporal criada por Octavio Aragão e a do Poul Anderson. O manauara ainda provocou, indagando sobre o irmão
da Carla, Daniel Alvarez, meu pseudônimo masculino que escrevia FC hard e que também
auferiu um prêmio com a noveleta “A Filha do Predador”, publicada originalmente
em seu nome. Carlos Relva advogou a existência
de uma linha histórica alternativa em que a escritora Carla Cristina Pereira
administra um pseudônimo masculino de Gerson Lodi-Ribeiro.
Quando Elache
exibiu a edição da Asimov’s brasileira que publicou a noveleta magnífica
de Frederik Pohl, “Esperando os Olimpianos”, rememoramos uma série de
narrativas alternativas inspiradas em Estados Romanos Mundiais e sua subtemática,
os Romanos na América. Relva aproveitou
o ensejo para falar de sua coletânea, Sete Mundos, que devo adquirir nos
próximos dias. Elache me pediu para
classificar o romance clássico de L. Sprague de Camp, Lest Darkness Fall
(1939)[13]
pela taxonomia que leva em conta a distância entre o ponto de divergência e a ação
narrativa. Expliquei que, em vez de um
simples passado alternativo, o romance em questão pertence a uma terceira
categoria, mais rara: a narrativa da geração do próprio ponto de divergência,
ou seja, da eclosão da linha histórica alternativa. Quando começamos a falar das mudanças no
passado histórico criando linhas alternativas, acabamos abordando a questão da
elasticidade do continuum espaçotemporal e de sua resistência às mudanças que cronoterroristas
eventuais almejam lhe impor.
Então, enfim
voltamos à questão dos spoilers. Destaco
a frase da Paola De Marco, selecionando-a como uma das epígrafes desta crônica. Hide também falou que não ligava aos spoilers. Há quem advogue que essa preocupação excessiva
com os spoilers seja só uma característica psicológica dos millenniums.
* *
*
Ao fim desta crônica,
o bate-papo “Café Especulativo 27: História Alternativa” já havia alcançado 126
visualizações.
Após o fim da
transmissão pelo YouTube ainda permanecemos batendo papo por uns quinze ou
vinte minutos, ocasião em que cogitamos novas participações, de repente, para
discutir as características principais da FC hard; a temática de neandertais na
ficção científica; ou destrinchar o romance O Barco de Um Milhão de Anos,
do Poul Anderson. Vamos ver se rola.
De todo modo,
foi uma oportunidade divertida ímpar de conversar sobre ficção científica e
outros bichos mais com amigos altamente perceptivos. Já me sinto ansioso por repetir a dose.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 23 de abril de 2022 (sábado).
Participantes:
Alexander Meireles
(Fantasticursos).
Carlos Relva
(Café Especulativo).
Ciça Ribeiro
Autora.
*Cláudia Quevedo
Lodi.
*Daisy Lodi Ribeiro.
Edgar Smaniotto
(Café Especulativo).
Eduardo Torres.
Gerson Lodi-Ribeiro.
Helil Neves.
Hidemberg Alves
da Frota.
Mister Dovah.
Paola De
Marco.
Paulo Elache
Duarte (Café Especulativo).
Ricardo Eduardo
Mendonça.
Rodrigo Fernandes.
[1]. Citei brevemente
o papel do fantasista José J. Veiga como percursor do subgênero da história alternativa
no Brasil, pincelando um pouco sobre seu romance A Casca da Serpente (Bertrand
Brasil, 1989), cujo ponto de divergência é a sobrevivência de Antônio Conselheiro
após a destruição do Arraial dos Canudos, apresentando minhas ressalvas sobre
essa obra.
[2]. Nanorresenha
do meu bunker de dados: Napoléon et la Conquête du Monde, 1812-1832,
Histoire de la Monarchie Universelle (The Apocryphal Napoleon) – clássico
seminal do subgênero da história alternativa (1836), cuja primeira edição foi
publicada meros quinze anos após a morte de Napoleão Bonaparte em Santa Helena. O autor é claramente um bonapartista. Ponto de divergência: exércitos imperiais
franceses tomam São Petersburgo em 1812 e subjugam o Império Russo. Após a conquista da Inglaterra, Napoleão se
torna o virtual soberano da Europa e avança a passos largos para unificar a
Terra da primeira metade do século XIX sob o seu comando. Para tanto, demole o Império Otomano, conquista
a Ásia e a África e recebe as Américas de mãos beijadas das antigas colônias,
ora independentes. A tradução para o inglês
ficou a cargo do autor e estudioso de ficção científica Brian Stableford.
[3]. Outra
nanorresenha do bunker: A Transatlantic Tunnel, Hurrah! (1972) – romance
de história alternativa sui generis pelo simples fato de possuir dois
pontos de divergência: o primeiro em 1212, consistindo na derrota cristã para
os mouros na Batalha de Navas de Tolosa; e o segundo, em 1780, o malogro da Revolução
Americana. Em consequência, as Treze
Colônias permanecem britânicas até os dias de hoje. No presente, o engenheiro americano Augustine
Washington, descendente longínquo do desprezível George Washington, enforcado
por alta traição, decide limpar o nome da família na metrópole e nas colônias,
chefiando a construção de um túnel transatlântico ligando New York à costa
oeste da Inglaterra. Romance de ideias
interessantes, mas escrito de forma algo desajeitada e com os personagens muito
chapados. Mais tarde, o autor alegou que
se tratava de um infantojuvenil...
[4]. Nanorresenha: Phantastica
Brasiliana: 500 Anos de Histórias Deste e Doutros Brasis – antologia lançada
pela editora Ano-Luz para comemorar o quinto centenário do Descobrimento do
Brasil. Contém 12 trabalhos: “História
Alternativa” (ensaio), de James Rittenhouse; “Folha Imperial” de Ataíde
Tartari; “Não Mais” de Carlos Orsi Martinho; “Boto” de Daniel Tércio; “Xochiquetzal
e a Esquadra da Vingança” de Carla Cristina Pereira; “Sereia dum Mar Sem Fim” de
António de Macedo; “Trevo” de Octavio Aragão; “Capitão Diabo das Gerais” de
Gerson Lodi-Ribeiro; “O Salvador da Pátria” de Roberto de Sousa Causo; “Kupe-Dyeb”
de Adriana Simon; “Preste João no Ano do Elefante” de David L. Freitag; e “Primeiro
de Abril” de Roberval Barcellos.
[5]. Bunker: Pasquale’s
Angel (1994) no original – A divergência se situa circa 1470, quando
o gênio de Leonardo da Vinci, o Grande Engenheiro, propicia o advento da
revolução industrial com três séculos de antecedência. A ação se desenrola na Florença de 1518, quando
o artista Pasquale e o jornalista Niccolo Machiavelli investigam o assassínio
de um pintor da entourage de Rafael, grande artista e emissário papal, enviado
na tentativa de estabelecer a paz duradoura entre Florença e os Estados Pontifícios.
Quando o próprio Rafael é envenenado e
seu cadáver desaparece, aumentam os riscos de guerra contra Roma dos Papas e a
Espanha, cuja Armada do Almirante Hernán Cortez já veleja ao largo da Península
Italiana. Tradução de João Barreiros.
[6]. Bunker: Ruled
Britannia (2002) no original – romance de história alternativa solo,
considerado por muitos como a obra-prima de Turtledove, o maior cultor do
gênero. POD = 1588: Armada Espanhola triunfa
e Filipe II conquista a Inglaterra. No
décimo ano da ocupação castelhana em Londres, William Shakespeare se vê entre a
cruz e a espada quando é simultaneamente contratado pela Resistência Inglesa
(para escrever uma peça patriótica que incite a plebe à rebelião) e pelos dons
espanhóis (para escrever uma peça de elegia ao moribundo Rei Filipe II de
Espanha). Numa reconstituição histórica
belíssima, digna de seu gênio, o autor nos revela as intrigas e contraintrigas
que conduzem à elaboração das duas peças, com personagens inesquecíveis, como
Shakespeare em si, o oficial-dramaturgo espanhol Lope de Vega; o grande rival
de Shakespeare, Christopher Marlowe; os atores Richard Burbage e Will Kemp; a
feiticeira Cicely Sellis e o alcaide Walter Strawberry. Turtledove absolutamente em seu melhor! Tradução de alta qualidade de Jorge Candeias.
[7]. Bunker: Fatherland
(1992) no original – vitória nazista na Segunda Guerra Mundial. O romance se passa em 1964, durante a semana
de comemoração do 75º aniversário de Adolf Hitler. Investigador da polícia criminal da SS
descobre o cadáver de um membro proeminente do Partido e aos poucos desvenda um
segredo que poderá comprometer os esforços de paz do Império Alemão com os EUA
governados por Joseph Kennedy. Passado
alternativo excepcionalmente bem urdido. Um romance impossível de largar! Tradução de A.B. Pinheiro de Lemos.
[8]. Bunker: Cowboy
Angels (2007) – agência secreta norte-americana de outra linha temporal
luta para manter o poder numa década de 1980 alternativa onde a “América Real”
controla uma Organização Pan-Americana, uma espécie de ONU composta por
Estados-clientes, EUA de outras linhas históricas. Dentro desse background, agente renegado
descobre meio de voltar no tempo e pretende consertar os erros do passado,
envolvendo a filha e o melhor amigo na trama temporal e dimensional. Enredo instigante e movimentado desse autor britânico
com mais do que uma ponta de sátira ao nacionalismo exacerbado dos
norte-americanos. O romance deixa um
pouco a desejar na exploração das outras linhas históricas: só parece existir
dois tipos de LHA: aquelas que divergiram no último sessenta ou setenta anos e
aquelas onde os seres humanos nunca chegaram à América.
[9]. Bunker: The
Big Time (1961) no original – duas civilizações alienígenas em guerra
temporal, pintam e bordam na história humana, utilizando humanos e alienígenas
como agentes e alterando passado, presente e futuro a seu bel prazer. Toda a narrativa se desenrola numa estação de
repouso em que os operativos temporais recobram suas forças e tônus emocionais
entre uma missão e a seguinte.
Integrantes da primeira equipe de operativos, composta por três humanos
(um romano; um britânico do século XIX; e um alemão de uma linha histórica
alternativa em que os nazistas conquistaram o mundo) entram em conflito com os
seis membros da estação extratemporal e com os três integrantes de uma segunda
equipe (uma guerreira cretense; um lunar, inteligência selenita de um bilhão de
anos atrás; e um venusiano de um bilhão de anos no futuro) por conta de (a)
surto desenfreado de paixonite entre a hospedeira Lili e o operativo britânico
metido a poeta, Bruce, e (b) bomba atômica trazida pela segunda equipe. Tradução
de José Sanz.
[10]. Bunker: This
is How You Lose the Time War (2019) no original – duas operativas de linhas
temporais distintas, Red, da Agência, e Blue, do Jardim, travam um duelo
milenar pelos meandros da história humana na Terra e periferia galáctica afora.
Ao longo do processo, acabam se
apaixonando uma pela outra e colocando as causas se suas culturas a perder em
nome desse amor. O processo de
aproximação romântica começa com a troca de cartas e mensagens de provocação,
iniciada sob a forma de um desafio entre a civilização hipertecnológica de Red
e a cultura de Blue, cuja tecnologia se apoia em princípios das ciências
biológicas. Embora bem escrito (e bem
traduzido), o despertar da paixão & amor entre indivíduos de culturas
extremamente díspares não foi mostrado de maneira convincente. Tradução de Natália Borges Polesso.
[11]. Também lembramos
que explicações similares sobre a origem das diferentes espécies humanoides são
dadas na saga de Perry Rhodan e na
própria Jornada nas Estrelas (a
partir da Nova Geração), para além de noutros universos ficcionais menos
cotados.
[12]. Até me dei ao desplante de contar o incidente
trágico-familiar da morte do Robô Gigante.
[13]. Bunker: Lest
Darkness Fall – Padway, um historiador especializado em História de Roma, é
transportado para a época da queda do Império Romano Ocidental e ali tenta
evitar o advento da Idade das Trevas através de algumas invençõezinhas muito
espertas.