quinta-feira, 28 de abril de 2022

 

"História Alternativa":

Live no Café Especulativo

 

202204232359P7 – 22.569 D.V.

 

“Portugal publicou mais obras de história alternativa do que o Brasil, porém, o Brasil publicou mais narrativas de história alternativa escritas por autores lusófonos do que Portugal.”

[Aos 29 minutos da live]

 

“Alguns dos meus detratores, estudiosos de ficção científica, diziam que a Carla escrevia melhor do que eu”

[Aos 150 minutos da live]

 

“Não tenho nada contra spoiler.  Eu até gosto!”

[Paola De Marco, aos 173 minutos da live]

 

Acabo de sair da live “História Alternativa” no canal Café Especulativo, mantido por meu amigo, o filósofo e estudioso de ficção científica, Edgar Smaniotto, com apoio de outros dois amigos, Paulo Elache Duarte e Carlos Relva.  Conforme o planejado, o evento se iniciou às 21h00 deste sábado e se prolongou por mais de três horas divertidas e gratificantes, porque não é todo dia que tenho oportunidade de conversar sobre FC, processo criativo e literatura em geral com sujeitos que, além de bons amigos, são especialistas com muita leitura no e sobre o assunto.

 

Chamada para a live “História Alternativa”.

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Ao longo da live, fiz-me acompanhar por uma garrafa de Boscato Cave Merlot 2019.  Porém, com a animação do bate-papo, confesso não ter passado da primeira taça.

Segue abaixo, o link do YouTube para quem não pôde assistir ao vivo e desejar dar uma conferida, ou para aqueles que quiserem rever um ou outro trecho da live:

https://www.youtube.com/watch?v=kwAh2dz5LLk

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Embora nosso bate-papo tenha abarcado uns poucos tópicos alheios às histórias alternativas, tentamos, à medida do possível, manter o foco nas narrativas e nuances do subgênero, com graus de sucesso variáveis ao longo dos cento e oitenta e um minutos do evento.

Ao me apresentar, Edgar falou sobre meu livro de não ficção, Cenários de História Alternativa (Amazon, 2019), que tive oportunidade de citar diversas vezes ao longo da live, e Carlos saudou a plateia com o “vida próspera e longa”, gesto e saudação vulcanas alternativas, se duvidar, oriundas do universo-espelho criado no episódio “Mirror, Mirror” da série original de Jornada nas Estrelas.

Ao longo de toda a live, quase que sem querendo, ironizamos a questão dos spoilers.  Só um pouquinho.

A pedido do anfitrião, delineei o início da minha carreira literária, primeiro como leitor ávido de ficção científica, associando meus primeiros escritos publicáveis às submissões que apresentei aos boletins do saudoso Clube de Ficção Científica Antares e para o Somnium, fanzine (hoje uma revista digital) do Clube de Leitores de Ficção Científica.  Com isto, pude falar também dos fanzines da década de 1980.  Então, passei à minha estreia profissional com a publicação do conto de FC “Xenopsicólogos na Fase Crítica” na revista francesa Antàres e a estreia no Brasil com a publicação das noveletas “Alienígenas Mitológicos” (julho de 1991) e “A Ética da Traição” (janeiro de 1993) da edição brasileira da Asimov’s.  Daí, falei sobre a motivação para escrever essa segunda noveleta, que acabou sendo a primeira narrativa de história alternativa que publiquei em minha carreira.  Nesse instante, Paulo Elache mostrou a capa da Isaac Asimov Magazine 25, inspirada em “A Ética da Traição”, cuja ação se passa inteiramente a bordo de uma barcaza nuclear paraguaia.[1]  Enfim, procurei distinguir história alternativa de história contrafactual, conceituando a primeira como a expressão ficcional da especulação histórica, ao passo que a última é a expressão não ficcional.  Isto posto, procurei distinguir os ensaios contrafactuais propriamente ditos dos contos de história alternativa escritos sob a forma de pseudofactuais e exemplifiquei com o conto clássico “If Lee Had Not Won the Battle of Gettysburg”, de Winston Churchill.  Concluí essa fala inicial citando Ab Urb Condita do Tito Lívio e The Napoleon Apocryphal (Black Coat Press, 2016)[2], de Louis Geoffroy, como textos seminais das histórias contrafactuais e alternativas, respectivamente.

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Ao contrário de várias outras lives de que participei, o Café Especulativo exibe uma postura informal que considero altamente positiva, que é a de submeter questões da plateia virtual assistindo ao evento aos participantes ao longo das falas desses e não apenas ao fim de suas participações formais.

Dessa forma, o pesquisador Alexander Meireles, responsável pelo canal Fantasticursos, indagou-me sobre qual seria o pecado principal na escrita do subgênero.  Em primeiro lugar, pelo fato de já estar com a mão na massa, por assim dizer, citei o pecado cometido por Veiga em A Casca da Serpente: o autor não deve mudar a personalidade da figura histórica envolvida com a divergência, ou seja, Antônio Conselheiro não pode se tornar um democrata convicto e um ateu de mente aberta, para além de um líder bonachão e libertário.  Outro pecado ou roubalheira que citei foi a persistência de figuras históricas quase idênticas às existentes em nossa linha temporal séculos após o ponto de divergência.  Uma terceira roubalheira mencionada foi o emprego de personagens da literatura criados por outros autores como se fossem figuras históricas alternativas, prática que acaba contaminando a narrativa de história alternativa com aromas e sabores mais típicos da ficção alternativa.  Nesse ponto, aos vinte e quatro minutos de gravação, aproveitei o ensejo para conceituar brevemente o subgênero da ficção alternativa.  E, finalmente, o quarto pecado, que é empregar mais de um ponto de divergência numa mesma narrativa de história alternativa, citando o exemplo de Harry Harrison, no romance A Transatlantic Tunnel, Hurrah! (Ballantine-Del Rey, 1991).[3]  Após essa citação, Paulo Elache mostrou as capas de vários livros de história alternativa publicados em português, dentre os quais a antologia Phantastica Brasiliana (Ano-Luz, 2000)[4], que organizei com Carlos Orsi para a editora de que éramos sócios.  Comentei que, embora não fosse uma antologia de história alternativa stricto sensu, cinco das onze narrativas constituem, sim, H.A.

 

Capa aberta da antologia Phantastica Brasiliana, elaborada por Cesar R.T. Silva.

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Do chat da plateia, Alexander indagou sobre as obras fundamentais do subgênero.  Atendo-me ao que existe publicado em português, comecei falando sobre o que foi publicado em Portugal, citando o clockpunk (protosteampunnk em que os avanços tecnológicos precoces se dão no Renascimento) A Invenção de Leonardo (Saída de Emergência, 2005)[5], de Paul J. McAuley; e O Dilema de Shakespeare (Saída de Emergência, 2006)[6], de Harry Turtledove.  Edgar se lembra do romance fix-up desse mesmo autor, Agent of Byzantium (Worldwide, 1988), publicada em Portugal no bojo da Coleção Argonauta e que, em sua essência, mostra seis histórias de contraespionagem bizantina protagonizadas pelo agente secreto do Império Romano Oriental, Basil Argyros, num passado alternativo onde o Islamismo jamais existiu e Constantinopla reconquistou todos os territórios romanos perdidos para os bárbaros.

Dentre as narrativas publicadas no Brasil, citei os romances de Segundas Guerras Alternativas O Homem do Castelo Alto (Brasiliense, 1985) de Philip K. Dick e Pátria Amada (Record, 1993)[7] de Robert Harris.  O primeiro virou a série homônima na Amazon Prime e o último virou o filme de história alternativa Nação do Medo (1994).

Após as citações mencionadas, Elache me pediu para conceituar as diferenças entre mundos paralelos e linhas históricas alternativas.  Expliquei que, embora uma LHA possa eventualmente se situar num planeta Terra de uma “dimensão” paralela à nossa, isto não precisa necessariamente ocorrer.  Para corroborar esse ponto, citei o romance Ring Around the Sun (1953) do meu autor favorito, Clifford D. Simak , como exemplo de mundos paralelos sem história alternativa, e também o romance de portais dimensionais, Cowboy Angels (Gollancz, 2008)[8], de Paul J. McAuley, então, especulei que esse último autor talvez se tivesse inspirado na série que congrega as narrativas da Paratime, do H. Beam Piper.

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Retomando a vertente dos subgêneros punk, Carlos Relva lembrou que havia escrito um conto de clockpunk, “Franksteam & Electrônia”, publicado na antologia Erótica Steampunk (Ornitorrinco, 2013), organizada pela Tatiana Ruiz, trabalho que comentei em meu Cenários de História Alternativa.  Relva indagou se steampunk sempre é história alternativa e eu respondi que “quase sempre, sim”.  Aproveitei o ensejo para, num exercício notável de contrapropaganda, recomendar a aquisição da edição em e-book do meu livro (vinte reais), em detrimento da edição impressa (acima de duzentos reais).

Em seguida, Carlos elogiou um site antigo que eu mantinha na finada (?) Geocities, Plausibilidade Científica e Literária.  Daí, lembrei que ele era mantido pelo Hidemberg Alves da Frota que, inclusive, estava presente na plateia virtual.  Bola levantada, ingressamos num debate sobre se o site ainda estaria ou não no ar.  Hidemberg ainda mencionou que esse site teria ajudado a pesquisadora norte-americana Mary Elizabeth “Libby” Ginway a conhecer melhor a FCB.  Bem, aos interessados na arqueologia da FCB, o endereço atual do site é: https://members.tripod.com/~gerson_lodi/.

Também voltou à baila a questão de se as narrativas de Randall Garrett ambientadas na linha histórica alternativa que ele criou para o romance Too Many Magicians (1966) seria ou não história alternativa.  Advoguei que tramas históricas alternativas que admitem a existência de elfos ou dragões, ou ainda, defendem a possibilidade da magia e da feitiçaria funcionarem se passam em verdade em universos paralelos com leis físicas diferentes das reinantes em nosso próprio universo, onde, sabidamente, a magia, a astrologia e a homeopatia não funcionam.

Edgar perguntou se a invasão alienígena em plena Segunda Guerra Mundial, proposta por Harry Turtledove em sua série WorldWar e a invasão dos marcianos de Wells durante a Primeira Guerra Mundial exibida no filme pseudofactual A Grande Guerra Marciana seriam história alternativa.  Defendi que os romances de Turtledove na WorldWar são H.A. bona fide, ao passo que o filme da invasão marciana alternativa é ficção alternativa.  Elache aproveitou a oportunidade para citar o mockmentário C.S.A.: The Confederate States of America, que baixei enquanto escrevo esta crônica.

Rodrigo Fernandes indagou se “universo alternativo não seria simplesmente ficção”?  Repliquei que, em certa medida, toda ficção está embutida em seu próprio universo ficcional, que pode ser mais ou menos semelhante ao “nosso universo real”, seja lá o que essa última expressão signifique.

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Por volta dos setenta e cinco minutos de transmissão, confirmamos que o universo-espelho da franquia Jornada nas Estrelas é realmente ficção alternativa.  Da série Enterprise, dentro dessa mesma franquia, lembramos do conceito de Guerra Fria Temporal e, dali para as patrulhas temporais – clássicas como a do Poul Anderson e alternativas, como as do Fred Saberhagen e do John Brunner – foi um pulo!  Procurei diferenciar esses dois tipos de patrulha temporal: a primeira luta para manter nossa linha histórica enquanto a última se esforça para manter uma linha alternativa qualquer que não a nossa.  Das PT, mencionamos os enredos de guerra temporal, com destaque para o romance A História é Outra (Expressão e Cultura, 1973)[9] do Fritz Leiber e a novela É Assim que se Perde a Guerra do Tempo (Companhia das Letras, 2020)[10] de Amal El-Mohtar & Max Gladstone.

Daí, rediscutimos até que ponto uma informação é spoiler ou não e a possibilidade de que enredos de ficção científica com elementos datados acabem parecidos com histórias alternativas.  Estabeleci um paralelo com os romances históricos.  Escrava Isaura, por exemplo, não é um romance histórico.  Porque, na época em que foi escrito, havia escravidão no Brasil.  Era um romance ambientado em sua própria época, lido e apreciado, inclusive, por Dom Pedro II.

Aos oitenta e sete minutos do certame, Elache mostrou outros romances de história alternativa publicados em português, como o presente alternativo Associação Judaica de Polícia (Companhia das Letras, 2009) do Michael Chabon; a história natural alternativa A Oeste do Eden (Gradiva, 1986) do Harry Harrison; e A Máquina Diferencial (Aleph, 2015) de William Gibson & Bruce Sterling.

Então, Elache me instigou a falar sobre minhas próprias histórias alternativas ao exibir a capa da Isaac Asimov Magazine # 25, edição que publicou minha noveleta “A Ética da Traição”.  Falei um pouco sobre a gênese dessa narrativa de presente alternativo, escrita em 1990 para o Concurso Jeronymo Monteiro, certame patrocinado pela Record, a editora responsável pela IAM, e enfim publicada em janeiro de 1993, com ênfase ao mapa da América do Sul que desenhei para melhor estabelecer essa linha histórica alternativa.  Frisei que, ao contrário de “A Ética da Traição”, a noveleta “Crimes Patrióticos”, ambientada na mesma LHA, constitui uma narrativa de passado alternativo.  Carlos comentou que, embora escrita há mais de trinta anos, “A Ética da Traição” permanece bastante atual em seu questionamento do racismo.

E-book A Ética da Traição.

Mapa da América do Sul da linha histórica alternativa PAX PARAGUAYA,
 

A partir de uma pergunta do Hidemberg, falamos um pouco sobre as narrativas de Impérios do Brasil Alternativos.  Citei en passant os trabalhos dos autores brasileiros que já abordaram essa subtemática, como Ataíde Tartari em “Folha Imperial” e Carlos Orsi em “Não Mais”, ambos publicados na antologia Phantastica Brasiliana; Cirilo Lemos em “Auto de Extermínio” e Sid Castro em “Cobra de Fogo”, ambos publicados em Dieselpunk: Arquivos confidenciais de uma bela época; Eric Novello em “”, publicado em Vaporpunk: Relatos steampunk publicados sob as ordens de Suas Majestades; e este que aqui escreve, em “Primos de Além-Mar”, publicado em A República Nunca Existiu!.  Questionei se essa não estaria prestes a se tornar a preferência nacional brasileira, assim como as Inglaterras Católicas são a preferência nacional dos autores britânicos e as Guerras de Secessão Alternativas constituem a dos norte-americanos.

Carlos Relva indagou se meu conto “Terra Brasilis”, publicado na antologia 2013: Ano Um (Ornitorrinco, 2012), organizada por Alícia Azevedo & Daniel Borba, seria história alternativa.  Expliquei que não era o caso e, aos cento e três minutos de transmissão, acabei ventilando um pouco do projeto da coletânea escrita a quatro mãos com Luiz Felipe Vasques com contos e noveletas ambientados nesse universo ficcional.  Delineei as premissas básicas desse enredo, que se baseiam no desaparecimento de todos os sinais da presença humana na Terra fora das fronteiras brasileiras.  Também afirmei que o enigma do desaparecimento do resto da humanidade não será desvendado nessa antologia.

Da plateia, Paola De Marco indaga se Douglas Adams já havia escrito algo em termos de história alternativa.  Respondi que, tanto quanto eu saiba, não.  Mais tarde, ela perguntaria o mesmo sobre a Ursula K. Le Guin.  Outra negativa.  Comentei que a maioria das narrativas de ficção científica dessa autora foi ambientada no universo ficcional dos Ekumen, que propõe uma origem comum extraterrestre para todas as espécies humanoides de nossa vizinhança galáctica, proposição segundo a qual a própria Terra não passaria de uma colônia perdida.[11]  Isto nos levou ao conceito de “ansível”, criado pela Le Guin, além de outros conceitos compartilhados na FC, como os de “hiperespaço” e “Três Leis da Robótica”.

Neste ponto, aos cento e nove minutos, divagamos e começamos a falar de seriados japoneses das décadas de 1960 e 1970, com ênfase em National Kid; Goldar: os Vingadores do Espaço; Ultraman; e Robô Gigante.[12]  Para tentar nos trazer de volta, se não ao tema da live, pelo menos à literatura de ficção científica, Elache mostrou a capa da Isaac Asimov Magazine # 15, inspirada em minha noveleta de FC hard escrita sob a forma de artigo de divulgação científica, “Alienígenas Mitológicos”.  Comentei que, embora à primeira vista não parecesse, essa narrativa é ambientada no universo ficcional Tramas de Ahapooka, o mesmo dos romances A Guardiã da Memória e Octopusgarden, e da noveleta “A Filha do Predador”.

Capa da Isaac Asimov Magazine # 15 inspirada em “Alienígenas Mitológicos”.

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Bastante ativo e animado nesta live, Hidemberg indagou se, na linha histórica alternativa Pax Paraguaya, ainda existiria um sentimento de brasilidade nos territórios anteriormente pertencentes ao Império que haviam sido incorporados à Gran República del Paraguay.  Confessei que essa questão foi abordada muito de passagem, quando mencionei em “A Ética da Traição” que no Protetorado del Mato Grueso ainda haveria cidadãos que teimavam em falar português em vez do castelhano.  Porém, ventilei que a questão da brasilidade era mais bem abordada no conto inédito escrito nessa LHA, “Se o Brasil Houvesse Vencido a Guerra do Paraguay”, protagonizado pelo mesmo professor nobelista, Albuquerque Vieira, do presente alternativo original.

Hide também perguntou se a novela de passado alternativo “O Vampiro de Nova Holanda” se inseriria na linha histórica alternativa Pax Paraguaya.  Esclareci que as aventuras do filho-da-noite Dentes Compridos se inserem noutra LHA, a Três Brasis.  Nessa oportunidade, aos cento e trinta e seis minutos, aproveitei para falar das diferenças entre as duas edições da minha coletânea de história alternativa, a Outros Brasis.  A edição da Papel & Virtual (2000) além de dois trabalhos da Três Brasis, “O Vampiro de Nova Holanda” e “Assessor para Assuntos Fúnebres” e das duas noveletas da Pax Paraguaya supracitadas, contém uma quinta narrativa, a noveleta de futuro alternativo “O Preço da Sanidade”, com um enredo com elementos de debunking ufológico, cujo ponto de divergência é a vitória de Lula na eleição presidencial que disputou contra Fernando Collor de Mello em 1989.  Hide, inclusive, lembrou de algo que eu havia momentaneamente esquecido: “O Preço da Sanidade” foi publicada profissionalmente em Portugal, no bojo da minha coletânea, Outras Histórias... (Editorial Caminho, 1997).

Aos cento e quarenta e cinco minutos, Hide indagou se eu ainda continuava escrevendo sob o pseudônimo feminino de Carla Cristina Pereira, ou se a “moça” se aposentara.  Expliquei meus motivos pragmáticos para tê-la “descontinuado”.  Basicamente, exterminei-a a fim de incorporar seus trabalhos e premiações ao meu currículo profissional.  Falei um pouco sobre “os tempos em que fui Carla” que, aliás, é o título de um ensaio que usei como introdução da minha coletânea Histórias de Ficção Científica por Carla Cristina Pereira (Draco, 2012).  Também confessei que minha esposa e minha irmã costumavam afirmar que eu escrevia melhor como Carla do que como Gerson.  Enfim, lembrei que Carla escreveu uma noveleta para o U.F. Intempol, “Clandestina Candente de Cosa”, uma espécie de crossing-over entre a patrulha temporal criada por Octavio Aragão e a do Poul Anderson.  O manauara ainda provocou, indagando sobre o irmão da Carla, Daniel Alvarez, meu pseudônimo masculino que escrevia FC hard e que também auferiu um prêmio com a noveleta “A Filha do Predador”, publicada originalmente em seu nome.  Carlos Relva advogou a existência de uma linha histórica alternativa em que a escritora Carla Cristina Pereira administra um pseudônimo masculino de Gerson Lodi-Ribeiro.


Capa da coletânea Histórias de Ficção Científica por Carla Cristina Pereira.


Quando Elache exibiu a edição da Asimov’s brasileira que publicou a noveleta magnífica de Frederik Pohl, “Esperando os Olimpianos”, rememoramos uma série de narrativas alternativas inspiradas em Estados Romanos Mundiais e sua subtemática, os Romanos na América.  Relva aproveitou o ensejo para falar de sua coletânea, Sete Mundos, que devo adquirir nos próximos dias.  Elache me pediu para classificar o romance clássico de L. Sprague de Camp, Lest Darkness Fall (1939)[13] pela taxonomia que leva em conta a distância entre o ponto de divergência e a ação narrativa.  Expliquei que, em vez de um simples passado alternativo, o romance em questão pertence a uma terceira categoria, mais rara: a narrativa da geração do próprio ponto de divergência, ou seja, da eclosão da linha histórica alternativa.  Quando começamos a falar das mudanças no passado histórico criando linhas alternativas, acabamos abordando a questão da elasticidade do continuum espaçotemporal e de sua resistência às mudanças que cronoterroristas eventuais almejam lhe impor.

Então, enfim voltamos à questão dos spoilers.  Destaco a frase da Paola De Marco, selecionando-a como uma das epígrafes desta crônica.  Hide também falou que não ligava aos spoilers.  Há quem advogue que essa preocupação excessiva com os spoilers seja só uma característica psicológica dos millenniums.

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Ao fim desta crônica, o bate-papo “Café Especulativo 27: História Alternativa” já havia alcançado 126 visualizações.

Após o fim da transmissão pelo YouTube ainda permanecemos batendo papo por uns quinze ou vinte minutos, ocasião em que cogitamos novas participações, de repente, para discutir as características principais da FC hard; a temática de neandertais na ficção científica; ou destrinchar o romance O Barco de Um Milhão de Anos, do Poul Anderson.  Vamos ver se rola.

De todo modo, foi uma oportunidade divertida ímpar de conversar sobre ficção científica e outros bichos mais com amigos altamente perceptivos.  Já me sinto ansioso por repetir a dose.

Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 23 de abril de 2022 (sábado).

 


Participantes:

Alexander Meireles (Fantasticursos).

Carlos Relva (Café Especulativo).

Ciça Ribeiro Autora.

*Cláudia Quevedo Lodi.

*Daisy Lodi Ribeiro.

Edgar Smaniotto (Café Especulativo).

Eduardo Torres.

Gerson Lodi-Ribeiro.

Helil Neves.

Hidemberg Alves da Frota.

Mister Dovah.

Paola De Marco.

Paulo Elache Duarte (Café Especulativo).

Ricardo Eduardo Mendonça.

Rodrigo Fernandes.

 



[1].  Citei brevemente o papel do fantasista José J. Veiga como percursor do subgênero da história alternativa no Brasil, pincelando um pouco sobre seu romance A Casca da Serpente (Bertrand Brasil, 1989), cujo ponto de divergência é a sobrevivência de Antônio Conselheiro após a destruição do Arraial dos Canudos, apresentando minhas ressalvas sobre essa obra.

[2].  Nanorresenha do meu bunker de dados: Napoléon et la Conquête du Monde, 1812-1832, Histoire de la Monarchie Universelle (The Apocryphal Napoleon) – clássico seminal do subgênero da história alternativa (1836), cuja primeira edição foi publicada meros quinze anos após a morte de Napoleão Bonaparte em Santa Helena.  O autor é claramente um bonapartista.  Ponto de divergência: exércitos imperiais franceses tomam São Petersburgo em 1812 e subjugam o Império Russo.  Após a conquista da Inglaterra, Napoleão se torna o virtual soberano da Europa e avança a passos largos para unificar a Terra da primeira metade do século XIX sob o seu comando.  Para tanto, demole o Império Otomano, conquista a Ásia e a África e recebe as Américas de mãos beijadas das antigas colônias, ora independentes.  A tradução para o inglês ficou a cargo do autor e estudioso de ficção científica Brian Stableford.

[3].  Outra nanorresenha do bunker: A Transatlantic Tunnel, Hurrah! (1972) – romance de história alternativa sui generis pelo simples fato de possuir dois pontos de divergência: o primeiro em 1212, consistindo na derrota cristã para os mouros na Batalha de Navas de Tolosa; e o segundo, em 1780, o malogro da Revolução Americana.  Em consequência, as Treze Colônias permanecem britânicas até os dias de hoje.  No presente, o engenheiro americano Augustine Washington, descendente longínquo do desprezível George Washington, enforcado por alta traição, decide limpar o nome da família na metrópole e nas colônias, chefiando a construção de um túnel transatlântico ligando New York à costa oeste da Inglaterra.  Romance de ideias interessantes, mas escrito de forma algo desajeitada e com os personagens muito chapados.  Mais tarde, o autor alegou que se tratava de um infantojuvenil...

[4].  Nanorresenha: Phantastica Brasiliana: 500 Anos de Histórias Deste e Doutros Brasis – antologia lançada pela editora Ano-Luz para comemorar o quinto centenário do Descobrimento do Brasil.  Contém 12 trabalhos: “História Alternativa” (ensaio), de James Rittenhouse; “Folha Imperial” de Ataíde Tartari; “Não Mais” de Carlos Orsi Martinho; “Boto” de Daniel Tércio; “Xochiquetzal e a Esquadra da Vingança” de Carla Cristina Pereira; “Sereia dum Mar Sem Fim” de António de Macedo; “Trevo” de Octavio Aragão; “Capitão Diabo das Gerais” de Gerson Lodi-Ribeiro; “O Salvador da Pátria” de Roberto de Sousa Causo; “Kupe-Dyeb” de Adriana Simon; “Preste João no Ano do Elefante” de David L. Freitag; e “Primeiro de Abril” de Roberval Barcellos.

[5].  Bunker: Pasquale’s Angel (1994) no original – A divergência se situa circa 1470, quando o gênio de Leonardo da Vinci, o Grande Engenheiro, propicia o advento da revolução industrial com três séculos de antecedência.  A ação se desenrola na Florença de 1518, quando o artista Pasquale e o jornalista Niccolo Machiavelli investigam o assassínio de um pintor da entourage de Rafael, grande artista e emissário papal, enviado na tentativa de estabelecer a paz duradoura entre Florença e os Estados Pontifícios.  Quando o próprio Rafael é envenenado e seu cadáver desaparece, aumentam os riscos de guerra contra Roma dos Papas e a Espanha, cuja Armada do Almirante Hernán Cortez já veleja ao largo da Península Italiana.  Tradução de João Barreiros.

[6].  Bunker: Ruled Britannia (2002) no original – romance de história alternativa solo, considerado por muitos como a obra-prima de Turtledove, o maior cultor do gênero.  POD = 1588: Armada Espanhola triunfa e Filipe II conquista a Inglaterra.  No décimo ano da ocupação castelhana em Londres, William Shakespeare se vê entre a cruz e a espada quando é simultaneamente contratado pela Resistência Inglesa (para escrever uma peça patriótica que incite a plebe à rebelião) e pelos dons espanhóis (para escrever uma peça de elegia ao moribundo Rei Filipe II de Espanha).  Numa reconstituição histórica belíssima, digna de seu gênio, o autor nos revela as intrigas e contraintrigas que conduzem à elaboração das duas peças, com personagens inesquecíveis, como Shakespeare em si, o oficial-dramaturgo espanhol Lope de Vega; o grande rival de Shakespeare, Christopher Marlowe; os atores Richard Burbage e Will Kemp; a feiticeira Cicely Sellis e o alcaide Walter Strawberry.  Turtledove absolutamente em seu melhor!  Tradução de alta qualidade de Jorge Candeias.

[7].  Bunker: Fatherland (1992) no original – vitória nazista na Segunda Guerra Mundial.  O romance se passa em 1964, durante a semana de comemoração do 75º aniversário de Adolf Hitler.  Investigador da polícia criminal da SS descobre o cadáver de um membro proeminente do Partido e aos poucos desvenda um segredo que poderá comprometer os esforços de paz do Império Alemão com os EUA governados por Joseph Kennedy.  Passado alternativo excepcionalmente bem urdido.  Um romance impossível de largar!  Tradução de A.B. Pinheiro de Lemos.

[8].  Bunker: Cowboy Angels (2007) – agência secreta norte-americana de outra linha temporal luta para manter o poder numa década de 1980 alternativa onde a “América Real” controla uma Organização Pan-Americana, uma espécie de ONU composta por Estados-clientes, EUA de outras linhas históricas.  Dentro desse background, agente renegado descobre meio de voltar no tempo e pretende consertar os erros do passado, envolvendo a filha e o melhor amigo na trama temporal e dimensional.  Enredo instigante e movimentado desse autor britânico com mais do que uma ponta de sátira ao nacionalismo exacerbado dos norte-americanos.  O romance deixa um pouco a desejar na exploração das outras linhas históricas: só parece existir dois tipos de LHA: aquelas que divergiram no último sessenta ou setenta anos e aquelas onde os seres humanos nunca chegaram à América.

[9].  Bunker: The Big Time (1961) no original – duas civilizações alienígenas em guerra temporal, pintam e bordam na história humana, utilizando humanos e alienígenas como agentes e alterando passado, presente e futuro a seu bel prazer.  Toda a narrativa se desenrola numa estação de repouso em que os operativos temporais recobram suas forças e tônus emocionais entre uma missão e a seguinte.  Integrantes da primeira equipe de operativos, composta por três humanos (um romano; um britânico do século XIX; e um alemão de uma linha histórica alternativa em que os nazistas conquistaram o mundo) entram em conflito com os seis membros da estação extratemporal e com os três integrantes de uma segunda equipe (uma guerreira cretense; um lunar, inteligência selenita de um bilhão de anos atrás; e um venusiano de um bilhão de anos no futuro) por conta de (a) surto desenfreado de paixonite entre a hospedeira Lili e o operativo britânico metido a poeta, Bruce, e (b) bomba atômica trazida pela segunda equipe.  Tradução de José Sanz.

[10].  Bunker: This is How You Lose the Time War (2019) no original – duas operativas de linhas temporais distintas, Red, da Agência, e Blue, do Jardim, travam um duelo milenar pelos meandros da história humana na Terra e periferia galáctica afora.  Ao longo do processo, acabam se apaixonando uma pela outra e colocando as causas se suas culturas a perder em nome desse amor.  O processo de aproximação romântica começa com a troca de cartas e mensagens de provocação, iniciada sob a forma de um desafio entre a civilização hipertecnológica de Red e a cultura de Blue, cuja tecnologia se apoia em princípios das ciências biológicas.  Embora bem escrito (e bem traduzido), o despertar da paixão & amor entre indivíduos de culturas extremamente díspares não foi mostrado de maneira convincente.  Tradução de Natália Borges Polesso.

[11].  Também lembramos que explicações similares sobre a origem das diferentes espécies humanoides são dadas na saga de Perry Rhodan e na própria Jornada nas Estrelas (a partir da Nova Geração), para além de noutros universos ficcionais menos cotados.

[12].  Até me dei ao desplante de contar o incidente trágico-familiar da morte do Robô Gigante.

[13].  Bunker: Lest Darkness Fall – Padway, um historiador especializado em História de Roma, é transportado para a época da queda do Império Romano Ocidental e ali tenta evitar o advento da Idade das Trevas através de algumas invençõezinhas muito espertas.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

 

Como Escrever Ficção Científica”:

Entrevista no EscritaCast

 

202204082359P6 – 22.554 D.V.

 

“Não ouçam o Gerson.  Esse livro merece pesar na estante.”

[Flávio Medeiros, sobre a edição impressa de Cenários de História Alternativa]

 

The Expanse foi de ficção científica hard a space opera.”

[Luiz Felipe Vasques]

 

Não é que ninguém é de ninguém.  É que todo mundo é de todo mundo.”

[Minha tentativa de justificar Estranhos no Paraíso]

 

Não existe temática surrada.  Existe abordagem surrada.”

 

Fui convidado três semanas atrás para uma entrevista com Newton Nitro e Carlos Rocha no podcast EscritaCast, iniciativa também refletida no YouTube.  O programa foi antecedido pela publicação ontem de uma resenha bastante elogiosa de meu romance de ficção científica e história alternativa Estranhos no Paraíso (Draco, 2015), publicado pelo Nitro em seu site Nitrodungeon[1] e divulgada furiosamente por mim nas redes sociais e WhatsApp da vida.  Enfim, às 20h00 desta sexta-feira, a entrevista em si foi ao ar e sua versão youtúbica já se encontra disponível.[2]

Como dever de casa, assisti anteontem a entrevista que meu amigo Eduardo Massami Kasse gravou para o EscritaCast há duas semanas.  Sua entrevista foi no EscritaCast # 14.  A minha será a # 15.  Na semana que vem, Ana Lucia Merege gravará a # 16.  Na entrevista do Kasse, senti o clima de descontração e intuí o que os dois anfitriões do podcast esperavam de mim.


Chamada para o entrevista “Como Escrever Ficção Científica”.

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A entrevista se deu através de uma videochamada pelo bom e velho Skype, retransmitida com um atraso de cerca de trinta segundos para o Youtube.  Após uns dez ou quinze minutos de bate-papo offline, entramos no ar.  Embora houvesse aberto uma segunda tela com a retransmissão para o YouTube, com intenção de acompanhar o chat da plateia que assistiria a entrevista online, durante os oitenta e três minutos da transmissão, a empolgação foi tanta que só houve tempo de conferir os comentários da galera do chat após o término da entrevista.

Finda a transmissão, eu, Nitro e Carlos ainda ficamos de papo offline por uma boa meia hora, onde pudemos abordar algumas questões que não havíamos falado online e trocar algumas figurinhas literárias de praxe.

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Capa de Octopusgarden.


Após breves palavras de apresentação, Nitro pediu que eu falasse de meu último trabalho, no caso, o romance Octopusgarden (Draco, 2017), ambientado no universo ficcional Tramas de Ahapooka.  Aproveitei o ensejo para também citar de passagem A Guardiã da Memória (Draco, 2011), outro romance ambientado nesse mesmo U.F.  Desta vez me preparei direitinho e, a cada livro citado, exibi a capa durante uns pouco segundos, para deixar os espectadores com água na boca, visto que as capas da Draco são lindas.  Expliquei brevemente o planeta Ahapooka e o que ele representa, antes de delinear a trama e o enredo de Octopusgarden.  Não dá para comentar esse romance sem falar um pouco dos dolfinos, golfinhos inteligentes cujos ancestrais foram promovidos à racionalidade pela cultura humana de Tannhöuser, no Sistema Gigante de Olduvaii.  Bastou que eu e Nitro falássemos em cetáceos racionais e os membros da Confraria dos Golfinhos[3] presentes na plateia, Ana Lucia Merege e Flávio Medeiros Jr. se manifestarem com gáudio inaudito.  Confessei as homenagens prestadas ao autor norte-americano David Brin nesse romance, pela criação do U.F. EarthClan, estabelecido em sua antologia inicial[4].  Dentro dessa temática de promoção de animais à racionalidade, Carlos Rocha lembrou do Galápagos (1985), do Kurt Vonnegut e eu lembrei do precursor inicial dessa ideia, Olaf Stapledon, no romance Last and First Men (1930)[5], aproveitando para conceituar as estratégias de pantropia em oposição às de terraformização.

Em seguida, Nitro apresentou brevemente meus principais trabalhos publicados pela Draco.  Então, comentou a trama, o enredo e as rupturas de paradigmas que encontrou na leitura do Estranhos no Paraíso.  Carlos falou que o primeiro contato com meus escritos foi com o conto “Coleira do Amor”, publicado na antologia Imaginários 1 (Draco, 2009), organizada por Tibor Moricz, Eric Novello & Saint-Clair Stockler.[6]  Também elogiou minha noveleta “No Amor e na Guerra”, ambientado no U.F. Guerra Eterna e publicado na antologia Space Opera 1 (Draco, 2011), organizada por Hugo Vera & Larissa Caruso, citando especificamente os natibélicos – meus humanos preparados geneticamente para a guerra – o que nos fez lembrar o romance do John Scalzi, A Guerra do Velho (2005).[7]

À cada romance que eu citava, Nitro acessava a página da Draco para mostrá-lo aos espectadores.  Ao fim dos primeiros quinze minutos da entrevista, exibiu meu verbete na Wikipédia.  Aproveitei o ensejo para mencionar minhas crônicas de ficção científica e meu tijolão não ficcional, Cenários de História Alternativa (Amazon, 2019), onde procuro destrinchar esse subgênero da FC, exemplificando através livros e contos que já li, com ênfase na história alternativa lusófona.  Daí, falamos um pouco sobre histórias alternativas em geral.  Citamos o romance clássico de Segunda Guerra Mundial Alternativa, O Homem do Castelo Alto, do Philip K. Dick e a série de Apple, For All Mankind, que propõe a conquista da Lua pelos soviéticos em vez dos norte-americanos.

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Ainda no quesito histórias alternativas, Nitro me pediu dicas para escrever nesse subgênero.  Sugeri estudar direitinho o período histórico que se abordará na futura narrativa e, se possível, montar uma cronologia histórica alternativa.  Aproveitei para conceituar os diferentes tipos de H.A.: história da divergência; passados alternativos; e presentes alternativos.  Além de citar o futuro alternativo, Wasteland of Flint (2003)[8], do Thomas Harlan.

Também mencionei alguns pecadilhos a serem evitados por autores de H.A.: emprego de mais de um ponto de divergência numa mesma linha histórica alternativa e a utilização de figuras históricas do nosso presente ou passado próximo como personagens em narrativas alternativas em que o ponto de divergência eclodiu séculos ou milênios  antes da época em que a ação se passa.  Em seguida, falamos um pouco de steampunk como história alternativa.  Nessa mesma toada, acabei mencionando da obra Too Many Magicians (1966)[9] do Randall Garrett.  Na plateia, Gílson Cunha e Flávio Medeiros consideraram a magia científica de Garrett como roubalheira.

Das várias formas de roubalheira, talvez por mera coincidência, talvez por destino, acabamos caindo no U.F. The Expanse.  Nitro e eu concordamos que a protomolécula destruiu a plausibilidade do argumento ficcional.

Capa do romance Estranhos no Paraíso.

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Eram decorridos quarenta e dois minutos de entrevista quando, já à vontade, confessei como comecei a ler e escrever ficção científica.  Relembrando as coleções de FC da Hemus e da Expressão & Cultura, falei de minhas experiências em reescrever fins diferentes para os romances dos meus autores favoritos.

Mencionei brevemente minha experiência como coeditor do fanzine Hiperespaço: The Next Generation e contribuidor nos fanzines Somnium e Megalon.  Daí, falei das minhas experiências como sócio da editora Ano-Luz, com ênfase na organização das antologias Phantastica Brasiliana (2000) e Como Era Gostosa a Minha Alienígena! (2002).

Ao comentar meu trabalho como antologista, Nitro indagou o que eu valorizava ao analisar as submissões a uma antologia.  Expliquei que, para além da necessidade óbvia da qualidade do texto, a narrativa deve obrigatoriamente se adequar à temática proposta.  Ainda no quesito antologias, falamos um pouquinho sobre Solarpunk, subgênero da ficção científica com viés otimista inventado por brasileiros, quando da organização da antologia Solarpunk: Histórias Ecológicas Fantásticas em um Mundo Sustentável (Draco, 2002), mais tarde republicada em inglês no EUA (2018) e em italiano (2021).

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Aos cinquenta e sete minutos de entrevista, Nitro nos pediu que voltássemos à narrativa de Estranhos no Paraíso.  Elogiou a bissexualidade bem resolvida da tripulação da nave estelar Pioneira, que conduz a primeira expedição tripulada humana até Delta Pavonis, com o propósito precípuo de estabelecer o primeiro contato com as inteligências nativas do segundo planeta, os pavonianos, comparando com os relacionamentos sexoafetivos travadões da literatura de FC anglo-saxã.  Da plateia, Flávio reclamou que faltaram os golfinhos nas orgias a bordo da Pioneira.  Ele está certo, é claro.  Mas, enfim, não se pode ter tudo.  Advoguei que só um autor desleixado, enredado em teias emaranhadas de clichês, imaginaria que o controle da missão de uma expedição estelar de longo curso – cuja duração se medirá em décadas, mesmo quando excluídos os períodos de hibernação – seria idiota a ponto de selecionar tripulantes que não se ajustassem perfeitamente uns aos outros do ponto de vista psicológico e, portanto, sexual.  Daí, a ruptura de paradigma é justamente a inexistência de vilões e personagens que surtam a bordo, transformando-se no meio da narrativa em monstros homicidas.  Também comentei que se trata de um futuro mais ou menos remoto (2400 ec) em que toda a humanidade fala português.

Nesse ponto, Carlos me perguntou o que eu acho legal num conto, como antologista.  Respondi que tanto como leitor, autor ou antologista, aprecio trabalhos criativos, inovativos e originais.  Em termos de originalidade, advoguei que não existe temática surrada, mas sim abordagem surrada.  Também defendi a necessidade de se conhecer minimamente uma temática ou assunto ao se resolver escrever sobre ele.  Em termos do emprego de elementos de brasilidade em enredos de história alternativa, citei as narrativas de Antonio Luiz da Costa em sua linha histórica alternativa Outros 500.[10]

Voltando à baila dos astecas no espaço, citei as narrativas alternativas de Chris Roberson em seu U.F. Celestial Empire, onde astecas se opõem à expansão espacial chinesa sistema solar afora.  A diferença entre os enredos de Roberson e Harlan é que para esse último, os astecas são os protagonistas, ao passo que Roberson os emprega como antagonistas.

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Decorridos quase setenta minutos de entrevista, Carlos me pediu para falar um pouco sobre minhas experiências com o U.F. Taikodom©.

Após confessar meu vício debilitante, pero apaixonante, no jogo Sid Meier’s Civilization e seus sucessores que me consumiram na primeira metade da década de 1990, falei do meu envolvimento com a Hoplon Infotainment, primeiramente como criador da especificação do universo ficcional Taikodom© e, mais tarde, como consultor e produtor de material ficcional, sob a forma de ficção curta, novelas e romances.[11]

Falei menos sobre o Taikodom como jogo em si do que sobre seu universo ficcional multissegmentado em romances, coletâneas, graphic novels etc.  Quando comentei sobre o romance e a trilogia que escrevi no U.F. Taikodom© e que nunca foram publicados, Nitro me questionou sobre onde essas narrativas foram parar.  Respondi que permanecem sob meu domínio.  Ainda sobre o assunto dos universos compartilhados, citei o Intempol©, criado por Octavio Aragão na noveleta “Eu Matei Paolo Rossi”, publicado originalmente na antologia Outras Copas, Outros Mundos (Ano-Luz, 1998), organizada por Marcello Simão Branco.  Dois anos mais tarde, Octavio publicaria a antologia Intempol pela mesma editora.

Banner do lançamento da coletânea Taikodom:Crônicas.
Reparem nas "naves do desespero ao fundo".

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Ao fim da entrevista, Nitro me pediu para transmitir conselhos às novas gerações de escritores.  Em poucas palavras, recomendei-lhes que lessem bastante e procurassem dominar minimamente os subgêneros em que decidirem escrever.

No papo offline que rolou após o fim da entrevista, Newton e Carlos falaram que estão baseados em Minas Gerais e que são amigos de longa data do Flávio Medeiros Jr.  Newton Nitro estudou, inclusive, no mesmo colégio que o Flávio, embora cinco ou seis séries abaixo.

Também conversamos sobre nossas motivações como escritores e, sobretudo, como contadores de histórias.

Impressão nº 1: Sinto-me como se eu também já conhecesse esses dois sujeitos há tempos.

Impressão nº 2: Pode ser que eu esteja enganado, mas, parafraseando o fim do clássico Casablanca, tenho a impressão de que essa entrevista será o começo de duas grandes amizades.

 

Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 08 de abril de 2022 (sexta-feira).

 


Participantes:

Alexander Meireles (Fantasticursos).

Ana Lúcia Merege.

Carlos Rocha (EscritaCast).

Celso Pinheiro Mesquita.

Cláudia Quevedo Lodi.

Daisy Lodi Ribeiro.

Eduardo Massami Kasse.

Eduardo Torres.

Fabrício Suarez.

Flávio Medeiros.

Gerson Lodi-Ribeiro.

Gílson Luís Cunha (Café Neutrino).

Hidemberg Alves da Frota.

Lilian Abrahão.

Lucas Rosalem.

Luiz Felipe Vasques.

Newton Nitro (EscritaCast).

Sid Castro.

 



[1].  https://newtonrocha.wordpress.com/2022/04/07/estranhos-no-paraiso-gerson-lodi-ribeiro-uma-opera-espacial-imprevisivel-com-muita-aventura-misterios-e-sensualidade-nitroleituras-resenha-ficcaocientifica-literaturabrasileira/?fbclid=IwAR3WSqwz4QoGN2na0x5szSkYyJA9DlYIHD9tMrmfQxU6kI6jT1D32aM56S8.  Uma consequência inusitada da divulgação dessa resenha se deu no grupo História Alternativa do Facebook, onde um participante comentou que, embora tenha se sentido interessado pelo enredo, não compraria o romance por causa da “postura dos personagens”.  Instado a justificar seus motivos, argumentou que não apreciava um futuro hipotético em que a maioria dos seres humanos seriam bissexuais e sedimentou sua posição com as justificativas que já tem mais de sessenta anos e que sexo e ficção cientifica não deveriam se misturar.  Aliás, uma linha de raciocínio predominante entre os leitores e membros masculinos do fandom de FC&F na primeira metade do século XX.

[2].  https://www.youtube.com/watch?v=MxEMWbEEHcQ À época da conclusão desta crônica já estava com mais de duzentas visualizações.

[3].  Também conhecida como Centro de Estudos de Sexualidade Cetácea, a confraria constitui uma sociedade secreta fundada e estabelecida durante o lauto banquete num restaurante em Porto Alegre, onde comemorei meu vigésimo milésimo dia de vida.  Obviamente, a natureza e os propósitos reais dessa sociedade não serão revelados aqui, exceto para assegurar o leitor eventual que não se tratam de planos para a dominação mundial.  Temos outras perfídias em mente...

[4].  Sundiver (1980); Startide Rising (1983); e Uplift War (1987).  Os dois últimos foram lançados em Portugal na coleção Europa-América FC, sob os títulos Maré Alta Estelar e Guerra da Elevação, respectivamente.

[5].  Nanorresenha extraída do meu bunker de dados: Last and First Men – Em seu clássico da ficção científica, Stapledon narra a evolução cultural e biológica das diversas espécies humanas (dezoito no total), na Terra, em Vênus e Netuno, ao longo de dois bilhões de anos.  Instrutivo e inspirador de muitos temas dos romances de FC que vieram depois.  Maçante, por narrar uma história essencialmente sem personagens, sob forma de um compêndio histórico.  Em muitos aspectos conservador e ultrapassado.

[6].  Meu conto abre essa antologia, primeiro livro publicado pela Draco!😊

[7].  Outra nanorresenha do bunker: A Guerra do Velho (Aleph, 2016) – Viúvo sênior ingressa nas Forças de Defesa Colonial ao completar 75 anos, abdicando da cidadania terrestre, ao se tornar um recruta e receber um corpo jovem repleto de aperfeiçoamentos genéticos, para ajudá-lo a combater as potências alienígenas que ameaçam a diáspora humana na periferia galáctica.  Scalzi estabelece um diálogo profícuo com Heinlein (Tropas Estelares); Haldeman (Forever War) e Simak (“The Civilization Game”), mas comete alguns pecadilhos e incide em diversos clichês do gênero.  No todo, um enredo instigante, divertido e original com personagens extremamente bem construídos.

[8].  Bunker outra vez: Wasteland of Flint – Em futuro alternativo, onde navegadores japoneses descobriram a América em 1200 ec e começaram a comerciar aço e cavalos com os pré-astecas, o Império Asteca resistiu à tentativa de invasão dos Europeus e tornou-se a maior potência mundial ao longo do terceiro milênio.  Por volta de 2400, a humanidade é governada pelas aristocracias Mexica e Nipônica, comandadas respectivamente pelo Huey-Tlatoani nas Américas e o Mikado na Ásia.  Só que a diáspora interestelar humana periferia galáctica afora, alimentada em grande parte por colonos de planetas habitados por etnias derrotadas pelos astecas em Anáhuac (nossa Velha Terra) corre o risco de obliteração completa quando arqueólogos humanos descobrem artefatos e nanomáquinas deixados por uma supercivilização extinta em Ephesus III, planeta marcianiforme de sistema estelar além das vastas fronteiras do Império Humano.

[9].  E mais outra: Too Many Magicians – romance de história Alternativa em que método científico é substituído por técnicas de magia aplicada.  Império Anglo-Francês dos descendentes diretos de Ricardo Coração de Leão é a primeira potência mundial.  Neste background, um detetive investiga assassinato num enredo policial bastante enxuto.

[10].  Essas narrativas são destrinchadas em detalhes em meu livro Cenários de História Alternativa (Amazon, 2019).

[11].  Quase toda a ficção curta que escrevi nesse universo ficcional foi reunida na coletânea Taikodom: Crônicas (Devir, 2009), a citar:

“The Point of K(No)w Return” (noveleta);

“Despertar do Físico” (conto erótico inédito, no sentido de não ter sido previamente publicado no site da Hoplon);

Morituri te Salutant!” (noveleta inédita);

“Guia Tertius do Taikodom para o Turista Independente” (novela inédita);

“Escambos com Nativos” (conto);

“Segunda Ressurreição” (noveleta); e

“Confronto com Quimera” (novela).

Essa edição incluiu uma linha do tempo do universo ficcional e ilustrações coloridas ao fim do volume.  Capa de Ivan Jerônimo e orelha de Roctavio de Castro.