Live
sobre
Ficção
Científica e História Alternativa
com Eduardo
Kasse
202103192359P6 — 22.171 D.V.
“É verdade que você já foi
mulher e atendeu pela alcunha de Carla Cristina Pereira?”
[Eduardo Kasse]
“Até porque
se fosse por dinheiro, estaríamos ferrados. 😊”
[João Beraldo]
Participei ainda
há pouco, nesta noite de sexta-feira, último dia de verão carioca, de uma live
para falar sobre história alternativa e ficção científica, a convite do meu
amigo e companha Eduardo Massami Kasse, em seu canal de YouTube.
Tratou-se da
terceira participação em entrevistas ou lives nas últimas duas semanas. As outras foram uma entrevista ainda inédita,
por escrito, para uma revista brasileira de ficção científica, e uma outra entrevista,
oral, em português, para o podcast Brasil
es Mucho Más que Samba, mantido pelo departamento de Estudos de Cultura
Brasileira na Universidad de Salamanca, Espanha.
Edu denominou
nossa live “Navegando por histórias alternativas e ficções científicas
com Gerson Lodi-Ribeiro”. A se encontra disponível
no YouTube (47 visualizações até o fim da transmissão):
https://www.youtube.com/watch?v=_zBnk512zVI
* *
*
Estabelecemos
a conexão através do aplicativo Streamyard às 20h45 e iniciamos a live
no YouTube pontualmente às 21h00. Logo no
início do bate-papo, o relógio aqui da biblioteca enunciou suas nove badaladas
aos ouvintes. Levantei da poltrona num
pulo de susto, pois, das outras vezes, havia me lembrado de paralisá-lo. Parei o pêndulo para que ele não continuasse
bancando o engraçadinho. Autêntico gentleman
que é, Edu relevou minha gafe ao elogiar a pontualidade britânica com que iniciamos
o evento.
Ao longo dos noventa
minutos de duração da live, à semelhança do que costuma acontecer em outros
eventos desse gênero, a plateia participou com comentários e perguntas na seção
de chat, embora eu só tenha conseguido acessá-la em pleno após o fim da transmissão. No entanto, à medida que o papo transcorria,
grosso modo, consoante com nossa pauta previamente combinada, Edu Kasse trazia
à baila alguns desses comentários e intervenções da nossa plateia virtual, para
que eu pudesse respondê-los.
Vinho de
combate degustado durante a live, porque ninguém é de neutrônio e
cumpria manter a garganta hidratada: uma taça do Boscato Cave Merlot 2018. Findo o evento, presenteei-me com outra
taça. Como dizia o Bonaparte:
— Quando vitorioso,
bebo porque mereço. Quando derrotado,
porque preciso.
* * *
Após uma apresentação
breve aos espectadores, declarando-me escritor e antologista de ficção científica
e história alternativa, com direito a uma biografia ultrarresumida e um
jabazinho institucional sobre meu trabalho não ficcional Cenários de História
Alternativa (Amazon, 2019), falei um pouco sobre o começo da minha carreira
como escritor, abordando a publicação nos fanzines de FC&F da década de
1980 e delineando as duas versões da minha estreia profissional: a publicação do
meu conto “Xenopsicólogos na Fase Crítica” na edição número 35 da revista
francesa de ficção científica Antàres no segundo semestre de 1989 e a publicação
da noveleta de FC, em verdade um pseudofactual escrito sob a forma de um artigo
científico, “Alienígenas Mitológicos”, no número 15 da edição brasileira da Asimov’s,
em julho de 1991. Aproveitei para explanar
brevemente sobre o impacto em minha carreira das publicações aqui e lá fora da noveleta
de história alternativa “A Ética da Traição”.
Ao ser
perguntado pelo anfitrião sobre as mudanças ocorridas no mercado literário e na
visibilidade junto ao público desde essas estreias até hoje, discorri sobre as “redes
sociais” representadas pelas reuniões presenciais cariocas e paulistanas do
Clube de Leitores de Ficção Científica e as colunas de cartas daqueles fanzines
pré-internet, comentando o primeiro boom daquelas publicações amadoras e daí
passando à existência gloriosa, conquanto relativamente curta, das revistas de
FC&F em nossas bancas e então abordando a renascença do gênero ao fim da
primeira década do milênio, com o advento das publicações de ficção científica,
horror e fantasia por parte das pequenas editoras brasileiras.
* * *
Ao discorrer
sobre os subgêneros da ficção científica, falei um pouco sobre as repercussões da
publicação de FC convencional em comparação com a publicação de narrativas de história
alternativa no mercado lusófono.
A pedido do Edu,
explicitei os conceitos básicos da história alternativa, falando de “ponto de divergência”;
“linha histórica alternativa”; e da distinção entre “presentes alternativos” e “passados
alternativos”; exemplificando com minha LHA
Pax Paraguaya, que delineei nas noveletas “A Ética da Traição” e “Crimes
Patrióticos”.[1] Neste ponto, Edu apresentou a distinção entre
ficção histórica e história alternativa.
Na hora, cogitei falar de uma outra distinção, a existente entre a história
alternativa e a ficção alternativa, mas acabei deixando para depois e esquecendo
o assunto. No entanto, lembrei de
comentar sobre as diferenças entre escrever ficção científica genuinamente
brasileira e história alternativa genuinamente brasileira.
Quando Edu detalhou
a situação do mercado de literatura fantástica nacional, abordando o
preconceito do leitor médio contra a produção nacional, presente até um passado
recente, lembrei do preconceito similar do enófilo brasileiro contra os vinhos
nacionais, alegando que:
— Vinho
brasileiro não presta!
Comentei que,
tanto no caso dos vinhos quanto da literatura fantástica nacional, a qualidade da
produção brasileira está se elevando dramaticamente e a passos largos.
Eduardo Kasse
me provocou a destrinchar a gênese de Octopusgarden (Draco, 2017), trabalho
agraciado com o Argos 2018 na categoria Melhor Romance. Expliquei que o romance se originou como um
conto escrito em 1988 para uma antologia inspirada em canções dos Beatles,
capitaneada pela facção carioca do CLFC, a Beatles 4-ever. Embora a iniciativa não tenha vingado, concluí
o conto. No entanto, esse conto não foi
bem aceito pelo antologista, que acabou selecionando um outro conto meu, sem
qualquer ligação com os Beatles.[2] De todo modo, “Octopusgarden” acabou servindo
de semente para o romance homônimo. Edu comentou
que o romance tratava, dentre muitas outras coisas, de relações sexuais
interespecíficas entre humanos e golfinhos.
Essa questão instigante de somenos suscitou a participação de alguns
membros da plateia, sobretudo os amigos Ana Lúcia Merege e Flávio Medeiros,
nossos pares eminentes no Centro de Estudos de Sexologia Cetácea, misto de
confraria secreta e entidade multidisciplinar, cujos alicerces foram
estabelecidos num jantar antológico em Porto Alegre, por ocasião da Quarta Odisseia
Fantástica, em 2015, quando da comemoração do meu vigésimo milésimo dia de
vida. Outros membros da plateia virtual
demonstraram curiosidade e assombro com as descobertas e debates do CESC, temática
que será melhor elaborada em crônica futura ou, quem sabe, numa live? De qualquer maneira, Octopusgarden é
meu único romance em que os protagonistas não são humanos.
* * *
Em seguida, Edu
me pediu para falar um pouco sobre a experiência de ter mantido durante cerca
de quinze anos o pseudônimo feminino Carla Cristina Pereira. Comentei que Carla foi sem dúvida meu “personagem”
mais convincente, uma vez que logrou iludir quase todo o fandom lusófono e também
o anglo-saxão por uma década e meia, mantendo diálogos por carta e e-mails; publicando
traduções de artigos estrangeiros em fanzines locais; artigos, resenhas e
críticas nessas mesmas publicações; para além de contos e noveletas publicados em
antologias brasileiras e portuguesas entre 1998 e 2007.[3] Falei um pouco da gênese desse pseudônimo e
das motivações para criá-lo. Ao longo de
sua carreira, Carla granjeou mais premiações literárias do que eu. Houve até quem afirmasse que ela escrevia história
alternativa melhor do que eu. O mais
curioso é que até algumas das poucas pessoas que sabiam que eu era a Carla concordavam
com essa última afirmação... É uma pena
que, justo quando eu falava sobre a Carla, minha internet caiu, interrompendo a
fofoca (aliás, meu sinal caiu três vezes durante o evento, mas o Edu conseguiu
me reconvidar para que eu voltasse à cena rapidinho). O fato é que Carla despertou curiosidade e
interesse do fandom brasileiro e, até mesmo algumas paixonites, não obstante o fato
óbvio de jamais haver aparecido em público.
Ah, a imaginação humana... Edu e
alguns participantes do chat alegaram se tratar de “sapiossexualidade”,
isto é, atração sexual ou romântica por pessoas inteligentes. Enfim, para maiores detalhes sobre essa “personagem”
icônica da ficção científica brasileira, sugiro a leitura de meu ensaio “Os
Anos em que Fui Carla”.[4]
* * *
Mais para o fim
da live, Edu pediu que eu transmitisse algumas dicas para quem quisesse escrever
narrativas de história alternativa, o que deu margem para que eu delineasse a
lida envolvida na elaboração de linhas históricas alternativas.
Quando meu anfitrião
solicitou que eu falasse um pouco sobre meus próximos trabalhos, comentei sobre
os trabalhos produzidos durante a pandemia, com ênfase no romance curto distópico
infantojuvenil Pecados Terrestres, que mostra os estertores da civilização
global terrestre no último quartel deste século, vítima da hecatombe ambiental
e da pandemia causada pela Covid-91, e no romance Lady Europa de Rhea,
ambientado no mesmo universo ficcional das narrativas premiadas “A Filha do
Predador”; A Guardiã da Memória e Octopusgarden. Europa é a avó da Clara, protagonista do
Guardiã e narradora pré-adolescente de “A Filha do Predador”.
* * *
No que tange
a participação da nossa plateia virtual — constituída em boa parte por amigos
de longa data, dentre os quais, além dos já citados, compareceram, dentre
outros, Adílson Júnior; André Orsolon; Gílson Cunha; João Beraldo; Juliana
Berlim; Leon Nunes; Luiz Felipe Vasques; Renata da Conceição; Roctavio de
Castro; e Sid Castro — mostrou-se bastante ativa, postando comentários pertinentes,
referências espirituosas e indagações que enriqueceram substancialmente a live.
Eduardo Kasse e GL-R.
Já no meio do
bate-papo, Edu me perguntou quais as características de uma narrativa de história
alternativa de qualidade. Respondi que a
plausibilidade é fundamental, mas que o período da história abordado também precisa
transmitir algo relevante ao leitor.
Aproveitando a
presença de João Beraldo na plateia virtual, Edu pediu que eu falasse um pouco
no nosso trabalho no departamento de universo ficcional da Hoplon Infotainment
para a criação do M.M.O.G. Taikodom. Empreendimento em que todos fomos felizes até
que as coisas começaram a não dar certo, mas que, pelo menos, rendeu o romance Taikodom:
Despertar do Beraldo e minha coletânea de ficção curta, Taikodom:
Crônicas (Devir, 2009).
Renata da Conceição
me perguntou se desde que comecei a publicar história alternativa percebi alguma
relação por aqui entre o consumo de produtos históricos e os meus textos. Respondi que percebi alguma relação, mas
pouca. Expliquei que meus fãs parecem
gostar mais de FC do que H.A., mas que, no mundo acadêmico, meus trabalhos de história
alternativa repercutiram mais do que meus textos de ficção científica
convencional.
Outro amigão do
peito dos tempos da Hoplon, Roctavio de Castro, compareceu do meio pro fim da live
e se confessou impressionado com a paixão com que falei sobre a atividade literária.
Já o Gílson
Cunha me perguntou qual o meu romance anglo-saxão de história alternativa
favorito. Na hora eu travei, pois, de
tantos e tantos que li, como escrever apenas um? Gates of Worlds do Silverberg? A trilogia Aquila
do S.P. Somtow? A saga WorldWar do Harry Turtledove? O épico e estupendo Years of Rice and Salt do Kim Stanley Robinson? A
Oeste do Éden do Harry Harrison? Daí,
tive um insight e resolvi citar Agente de Bizâncio do Turtledove,
por ser o único romance daquele que é considerado o Papa da História Alternativa
jamais publicado em português. Na verdade,
trata-se de um romance fix-up reunindo as aventuras do agente imperial Basil
Argyros, que defende os interesses bizantinos numa linha histórica alternativa
em que o Império Romano Ocidental e Oriental persiste(m) até o século XIV, época
em que as narrativas desse passado alternativo se passam.
Enfim, como
tudo que é bom dura pouco, por volta das 22h30 encerramos a live. Em meus agradecimentos e despedidas, lembrei
ao povo que a Terra é esférica (na verdade, é um geoide. Porém, para que complicar, certo?), que a
Covid-19 é bem mais do que uma gripezinha e pedi que tomassem cuidado e
continuassem usando máscaras da forma correta e mantendo o distanciamento
social. Recomendações de praxe, pero desnecessárias,
uma vez que praticamente não há negacionistas na comunidade brasileira de aficionados
por narrativas fantásticas.
Só tenho a
agradecer ao meu grande amigo Eduardo Massami Kasse. Não só por ter me convidado a participar desta
live, mas também e sobretudo, por saber me instigar a responder as
perguntas certas nos momentos apropriados, dentro e fora da pauta.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 19 de março de 2021 (sexta-feira).
Participantes:
Adílson Júnior.
Ana Lúcia
Merege.
André
Orsolon.
Eduardo Massami
Kasse (anfitrião).
Flávio
Medeiros (Nerd Wars).
Frederico Portela
Lima.
Gabriel Boscariol.
Gerson Lodi-Ribeiro.
Gílson Luís
Cunha (Café Neutrino).
João Marcelo
Beraldo.
Jorge Gervásio Pereira.
Juliana Berlim.
Leon Nunes.
Luiz Felipe Vasques
(Clube de Leitores de Ficção Científica).
Renata
Aquino da Conceição.
Roctavio de
Castro.
Sandra Abrano.
Sid Castro.
[1]. Quando citei
essas duas noveletas, Edu lembrou os ouvintes de que ambas se encontram disponíveis
como e-books na Amazon. Faço minhas as palavras
dele: se quiserem experimentar, boa leitura! 😉
[2]. “Regresso ao Mundo
dos Sonhos”, uma narrativa em que cientistas tentam descobrir a verdade sobre o
que existe após a morte. Até hoje inédito
no Brasil, mas incluído em minha coletânea de ficção curta Outras Histórias...
(Editorial Caminho, 1997).
[3]. Em 1998, Carla
faria sua estreia profissional com a publicação do pseudofactual de história alternativa
“Se Cortez Houvesse Vencido a Peleja de Cozumel” na antologia Outras Copas,
Outros Mundos (Ano-Luz, Brasil) e em 2007 encerraria sua carreira
multipremiada com a publicação da noveleta de H.A. “Xochiquetzal em Cuzco”, na
antologia Por Universos Nunca Dantes Navegados (Tecnofantasia,
Portugal).
[4]. Creio que é possível
encontrar esse ensaio numa busca avançada no Google. Ele também foi publicado à guisa de prefácio
ou apresentação da coletânea de ficção curta, Histórias de Ficção Científica
por Carla Cristina Pereira (Draco, 2012), que reúne toda as narrativas
escritas sob esse pseudônimo feminino, exceto a noveleta “Xochiquetzal em Cuzco”
que, afinal de contas, já havia sido incorporada no romance curto Xochiquetzal:
uma Princesa Asteca entre os Incas (Draco, 2009).