domingo, 22 de novembro de 2015



A Cidade e a Cidade
no Vórtice Fantástico

201511212359P7  —  20.224 D.V.

“Somos todos filósofos aqui onde estou, e debatemos entre muitas outra coisas a questão de onde é que vivemos.  Quanto a essa questão, sou um liberal.  Sim, vivo no interstício, mas vivo ao mesmo tempo na cidade e na cidade.” (Tyador Borlú)

Deu-se nesta tarde de sábado chuvosa de primavera a sétima sessão mensal do núcleo carioca do Vórtice Fantástico.  Não pude comparecer à sessão do mês passado, que debateu o romance curto Hellraiser: Renascido no Inferno (Darkside, 2015) de Clive Barker e a novela A Narrativa de Arthur Gordon Pym (Nova Aguilar, 1997).
Como de costume, reunimo-nos na Biblioteca Parque Estadual, em frente ao Campo de Santana, no centro do Rio.  Muitos participantes de certames anteriores não puderam comparecer desta vez.  Presentes apenas o casal Renata Aquino & Eliseu Ferreira; Cláudio Gabriel; Lucas Leal e eu.  Nossa líder, Thaís Cavalcante tentou chegar, mas acabou desistindo ante o informe de que traficantes estariam para fechar a Grajaú-Jacarepaguá.
O livro do mês escolhido para novembro foi o romance  A Cidade e a Cidade (Boitempo, 2014), escrito pelo autor britânico China Miéville, publicado em 2009, e traduzido para o português por meu amigo Fábio Fernandes.  Aliás, tradução difícil, pois, embora fluente, o protagonista e narrador não tem o inglês como primeiro idioma e o autor o fez escrever errado para enfatizar esse ponto.
Aliás, essa leitura serviu para que eu perdesse meu preconceito em relação ao China Miéville.  Já baixei todos os romances desse autor disponíveis na internet.
Em sua essência, A Cidade e a Cidade fala da investigação de um homicídio.  Os elementos de literatura fantástica estão por conta do entrelaçamento — mais consensual do que dimensional — de duas cidades-Estado, Besžel e Ul Qoma.  O Detetive Tyador Borlú, da Divisão de Crimes Hediondos de Besžel investiga o homicídio da doutoranda de arqueologia norte-americana, Mahalia Geary, que escavava um sítio promissor em Ul Qoma, cidade gêmea siamesa que compartilha o mesmo espaço físico com Besžel e cujos prédios e cidadãos os beszelianos são ensinados a “desver” e “desouvir” desde a mais tenra infância.
Aos infratores de ambos os lados, a entidade aparentemente sobrenatural, a Brecha, e seus avatares humanos, encarregam-se de enquadrar com severidade.
O homicídio se revela parte de uma trama complexa à medida que Borlú, sua assistente Corwi e sua contraparte ul qomana, o policial Qussim Dhatt, descascam a cebola da investigação, envolvendo unificacionistas, Cidadãos Verdadeiros, agentes da Brecha e até mesmo a hipótese esotérica da existência de uma terceira cidade sobreposta às duas anteriores, Orciny.  Uma trama para lá de instigante com clímax algo prosaico.  Miéville é sem dúvida um autor inteligente e original, além de um estilista brilhante.
*     *      *

Mais uma vez, a bem da pontualidade, fui obrigado a pegar um táxi até a Biblioteca Parque Estadual para não me atrasar.  Cláudio Gabriel já havia chegado.  Enquanto nós dois guardávamos nossas mochilas, Renata Aquino e Lucas Leal chegaram.  Eliseu Ferreira apareceu pouco depois.
Antes da discussão sobre o romance de Miéville, distribuí exemplares da Phantastica Brasiliana (Ano-Luz, 2000) aos presentes, antologia que organizei com Carlos Orsi Martinho por ocasião do quinto centenário da Descoberta do Brasil.  Também passei às mãos da Renata a camisa Star Wars que havia recebido após minha participação numa mesa-redonda no Cineclube Fantástico do Planetário da Gávea, após a exibição do clássico Gattaca: Experiência Genética coisa de um mês atrás (1997).  Não precisei sortear, pois a camisa não caberia nos rapazes.
Ao comentar sobre o cineclube do planetário, eles me perguntaram se eu iria à JediCon.  Confirmei que pretendo comparecer tanto no sábado quanto no domingo.  Sábado para participar de uma mesa convocada por Clinton Davisson, presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC) e domingo para prestigiar a cerimônia de entrega do Prêmio Argos 2015.
Renata perguntou se eu conhecia algum dos trabalhos concorrentes na categoria Melhor Romance.  Falei que já havia lido e me impressionado positivamente com Tempos de Sangue: Guerras Eternas (Draco, 2014) do Eduardo Kasse; Padrão 20: Ameaça do Espaço-Tempo (Besouro Box, 2014) da Simone Saueressig; e Dezoito de Escorpião (Novo Século, 2014), do Alexey Dodsworth.  Ela me pediu para falar desse último romance de ficção científica e eu fiz isto, à medida do possível, preocupado em não cometer spoiler.
Conversamos um bocado sobre o A Cidade e a Cidade.  Nós cinco concordamos que as barreiras que separavam Besžel e Ul Qoma eram mais de caráter cultural e consensual do que propriamente dimensional.[1]  Confessei que, embora tenha gostado do romance desde o início, ao longo da leitura da primeira parte, ambientada em Besžel, senti que havia comprado gato por lebre, pois pareceu-me uma mera trama de investigação policial, praticamente desprovida de elementos fantásticos.  No fim da segunda parte, quando Borlú e a investigação passam de Besžel para Ul Qoma, começamos enfim a vislumbrar um pouco da real natureza da Brecha.  Outro ponto de concordância geral foi termos imaginado que a Brecha se constituía numa entidade não-humana sobrenatural e com vida própria.  Fato pacífico para nós cinco foi que os servidores da Brecha detinham aparato tecnológico não disponível ao resto da humanidade desse universo ficcional.
Do meio para o fim de nosso encontro, conversamos sobre o Watchmen, do Alan Moore, romance gráfico que debateremos no mês de dezembro.  Pretendo não apenas reler o graphic novel, mas também rever o filme.  Só não sei se conseguirei comparecer à reunião que se dará no próximo dia 19 de dezembro, pois devo regressar de Florianópolis para o Rio nesse dia e nosso voo parte de lá às 18h35.  Então, se a data for mantida, não será possível participar.
O papo sobre Watchmen trouxe à baila uma série de HQs de zumbis, Walking Dead, que Eliseu e Cláudio consomem com sofreguidão inaudita.  Segundo ambos, essa série de quadrinhos deu origem à série televisiva homônima.

Cláudio Gabriel, Lucas Leal, Eliseu Ferreira, Renata Aquino e GL-R.


Por volta das 17h40 deixamos a biblioteca rumo à Central do Brasil, onde meus amigos pegariam seus ônibus e eu embarquei no metrô.  Ao saltar em Botafogo, comprei um mix-árabe para viagem no Harad e tomei o ônibus de integração para casa.  Um encontro com poucas pessoas, clima intimista e bate-papos interessantes e altamente proveitosos.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 21 de novembro de 2015 (sábado).
Participantes:
Cláudio Gabriel
Eliseu Ferreira
Gerson Lodi-Ribeiro
Lucas Leal
Renata Aquino



[1].  Neste sentido, comentei que essa invisibilidade consensual se assemelhava um bocado àquela proposta por Robert Silverberg em sua noveleta “O Homem Invisível”, publicada em português no bojo da coletânea Mutantes (Melhoramentos, 1991); The Best of Robert Silverberg (1976), no original.  Aliás, essa narrativa deu origem ao roteiro de um belo episódio da telessérie Além da Imaginação, “Para Ver o Homem Invisível”.







sábado, 21 de novembro de 2015

Ficção Científica e o Ensino de Ciência (FIOCRUZ 2015)

Ficção Científica e o Ensino de Ciência
Mesa-Redonda na FIOCRUZ

201511192359P5  —  20.222 D.V.

 Abertura do PowerPoint.


“Nem toda forma de amor vale a pena.
Paixão é cocaína e amor é rivotril.”
[Ieda Tucherman]

Participei na manhã desta quinta-feira da mesa-redonda “Ficção Científica e o Ensino de Ciência” na Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) em companhia da Professora Ieda Tucherman, sob o convite das pesquisadoras Anunciata Sawada e Lúcia de La Rocque.
As tratativas para a efetivação dessa mesa-redonda começaram no início deste segundo semestre e somente se concretizaram na manhã de hoje.
O carro da FIOCRUZ chegou para buscar eu e Cláudia pontualmente às 08h30, rumando em seguida para Ipanema a fim de buscar Ieda Tucherman, doutora com quem eu já travara contato em 2005, por ocasião da Semana Jules Verne, seminário que se deu no campus da PUC-Rio sob os auspícios daquela universidade.
Aliás, a mesa-redonda de hoje foi a segunda de que participei na FIOCRUZ.  A primeira foi organizada pela pesquisadora Luísa Massarani e ocorreu de 22 de março de 2004 na Tenda da Ciência da instituição.  Dividi aquela mesa com os autores e estudiosos de ficção científica Bráulio Tavares e Roberto de Sousa Causo.
*     *      *

Nossa condução nos desembarcou por volta das 09h30 junto ao Pavilhão Hélio & Peggy Pereira (HPP) da FIOCRUZ, que se constitui no polo de pesquisa em virologia mais moderno da América Latina.  Anunciata nos recebeu à porta desse centro e nos conduziu até a sala onde se daria nossa mesa-redonda.  À porta dessa sala, reencontrei o pesquisador Cilmar Castro, também especializado na utilização da ficção científica como ferramenta no ensino de ciência, com quem travei contato durante uma mesa que dividimos no colégio EDEM de Laranjeiras em 2014.
Pouco antes do começo da mesa, enquanto o público acadêmico chegava e ocupava seus assentos, conversei com Lúcia de La Rocque e combinei com ela que lhe mandaria uma cópia em PDF de minha noveleta pós-apocalíptica “Postdomini”, publicada na antologia Depois do Fim (Draco, 2013), organizada por Eric Novello.  O bate-papo com Lúcia foi interrompido para que eu e Ieda concedêssemos entrevistas institucionais para Lucas Rocha, que trabalha no jornal de circulação interna da FIOCRUZ.
Entrevista com Lucas Rocha.

Tive oportunidade de rever Naelton Araújo, amigo de longa data que foi meu veterano no curso de Astronomia da UFRJ (Observatório do Valongo).  Responsável pela área de divulgação científica do Planetário da Gávea, Naelton sentou na primeira fila da plateia para a mesa-redonda.

Plateia interessada.

Começamos nossa mesa por volta das 10h20 com minha apresentação em PowerPoint.  Após minha apresentação pessoal e os agradecimentos pelo convite para o evento, abri com a recordação da mesa-redonda anterior, de 2004 e então comecei pelo começo, apresentando algumas definições básicas de ficção científica como parte da literatura fantástica.  Falei um pouco sobre a genealogia do gênero, comentando que a ficção científica é fruto da interação de uma mãe (Mary Shelley) e dois pais (Jules Verne e H.G. Wells).  Esse triângulo literário serviu de gancho para expor as divergências entre os dois “pais” no que concerne ao papel primordial da ficção científica: instruir (Verne) ou divertir (Wells).  Expus então a gênese da FC norte-americana com Hugo Gernsback, um discípulo fiel de Jules Verne.  Abordei a questão da falácia da literatura de antecipação, esclarecendo que a missão precípua da ficção científica não é prever o futuro (campo de atuação da futurologia), mas sim entreter e, quiçá, prevenir quanto às consequências adversas de alguns avanços científicos e tecnológicos.  Concluído este introito um tanto ou quanto longo, mergulhei no emprego da FC como ferramenta de ensino de ciência, tanto lato sensu (divulgação científica) quanto stricto sensu (FC no ensino em si, dentro e fora da sala de aula).  Creio ter conseguido interessar a plateia.

Aos leitores interessados em baixar a versão em PDF da apresentação acima, segue o link:


Lúcia de La Rocque.

Anunciata Sawada.

PowerPoint: Mestres definem Ficção Científica.




Encerrada a minha fala, Ieda e eu retornamos à mesa em si, pois ela não usou PowerPoint.  Ieda concordou que o papel principal da ficção científica é alertar quanto aos riscos inerentes à aplicação inconsequente da tecnologia, colocando que “a ficção científica assume a função de uma espécie de Grilo Falante da civilização, avisando-a quanto aos perigos associados ao emprego de certas técnicas e invenções.  Insistiu na importância da ética na ciência, sobretudo na área das biociências.  Num dos pontos altos de sua participação, Ieda declarou que “nem toda forma de amor vale a pena: paixão é cocaína e amor e rivotril”[1], pois as áreas do cérebro ativadas na pessoa apaixonada são as mesmas que se “acendem” sob o efeito da cocaína, ao passo que o sentimento de amor em si produz efeitos semelhantes àqueles induzidos pelo consumo de rivotril.

Ieda Tucherman e GL-R.

Encerrada a parte formal da mesa-redonda, passamos a palavra à plateia, para comentários, críticas e perguntas.  O público presente participou de forma animada, com discussões sobre clássicos do gênero (de Fahrenheit 451 a Doze Macacos, 2001: Odisseia no Espaço a Eu, Robô, até Dragon’s Egg e o recente Perdido em Marte) e questões sobre o emprego de jogos e quadrinhos de ficção científica em sala de aula; autoras e protagonistas femininas em narrativas de ficção científica; ética na pesquisa; viagens retrotemporais; FC pré-histórica; enredos de história alternativa; e vários outros temas instigantes e relevantes que não me voltam à memória agora.
Finda a mesa-redonda por volta das 13h00, Anunciata e Lúcia nos convidaram para almoçar num dos restaurantes da FIOCRUZ.  Como a instituição possui as dimensões de um grande campus universitário, precisamos embarcar no carro da Anunciata para seguir até lá.  No caminho, nossa anfitriã nos indicou e descreveu brevemente os principais centros de pesquisa da instituição, como o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos); a Casa de Oswaldo Cruz (COC); o Centro de Criação de Animais de Laboratório (CECAL); a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV, um segundo grau profissionalizante de excelência); e a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP); além, é claro, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) propriamente dito.
O restaurante em si não ficou nada a dever a uma filial do Delírio Tropical, com direito, inclusive, a uma taça de vinho tinto, além de carnes e massas muito gostosas.  Cláudia optou essencialmente pelas saladas, mas não abriu mão do mousse de chocolate como sobremesa.  Ao longo do bate-papo na mesa reservada para nós, aproveitamos para conhecer um pouco mais sobre as carreiras científicas na FIOCRUZ, sobretudo as de Anunciata e Lúcia La Rocque.  Porém, também conversamos sobre temas gerais, como o aquecimento global e os atentados recentes em Paris e as consequências da emigração de refugiados sírios para a Europa Ocidental.

Almoço caprichado no restaurante da FIOCRUZ.


Após o almoço, despedimo-nos da Lúcia e das demais pesquisadoras e iniciamos uma visita guiada com Anunciata pelos prédios históricos do campus da instituição, com ênfase especial ao Castelo da FIOCRUZ.  Do meu ponto de vista, foi de longe a parte mais gratificante deste dia que passamos em Manguinhos, mesmo considerando que eu simplesmente adoro falar sobre ficção científica e divulgar esse gênero que produz em meu cérebro efeito análogo ao da cocaína.  Anunciata nos contou detalhes preciosos da história da instituição e da vida e da carreira de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas.  Adoramos contemplar a coleção de charges e caricaturas coligidas pelo próprio patrono da instituição, quando de seu combate heroico à epidemia de febre amarela que grassava no Rio de Janeiro e no Brasil como um todo no início do século passado, antes, durante e depois da Revolta da Vacina (1904).  Fomos autorizados a utilizar o elevador do Castelo, o primeiro a ser instalado no Brasil.  Do quinto andar, contemplamos a vista magnífica do topo do Castelo, de onde se descortina boa parte da cidade e de onde se pode abarcar toda a extensão do instituto, que se revelou ainda maior do que supúnhamos até então.  Visitamos a Biblioteca de Livros Raros e avistamos a mesa em redor da qual os grandes sanitaristas de um século atrás se reuniam para discutir a política nacional de saúde.  Concluímos nossa visitação na antiga cavalariça, hoje desativada, onde os equinos eram inoculados para a produção de soro antipestoso.

Visita ao Castelo da FIOCRUZ.

Cláudia Quevedo Lodi, Ieda Tucherman e Anunciata Sawada.

Torre do Castelo.

Visão interna do Castelo.

Visão do topo.

Torre, ameias e merlões.

Cúpula de bronze.

Biblioteca de Livros Raros.

Castelo: de dentro para fora.

Castelo: acabamento arquitetônico primoroso.

Torre do Relógio.


Enfim, às 15h45, embarcamos na condução que nos traria de volta para casa.
Um dia inesquecível passado em uma das instituições de ensino e pesquisa mais importantes do país.  Nesta época em que vivemos tempos de desesperança ante a situação política, econômica e ética do país, passar um dia num pedacinho do Brasil em que, conquanto não seja perfeito, tudo funciona muito bem, como todo o resto do país deveria funcionar, constituiu uma experiência de lavar a alma.

Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 19 de novembro de 2015 (quinta-feira).


Participantes:
Anunciata Sawada
Cilmar Castro
Cláudia Quevedo Lodi
Gerson Lodi-Ribeiro
Ieda Tucherman
Lucas Rocha
Lúcia de La Rocque
Naelton Araújo



[1].  Aliás, esse é o título de um ensaio de Ieda, que pode ser encontrado aqui: