II Encontro de
Ficção
Científica e Ensino de Ciências
(FIOCRUZ)
Dia 4
202009242359P5 — 21.993 D.V.
“Descobri que a ficção científica
é mais esclarecedora do que a ciência para compreender como a tecnologia é
vista por pessoas situadas fora da elite pedagógica. Se a ciência proporciona o input técnico para
a tecnologia; a ficção científica nos exibe o output humano.”
[Freeman
Dyson]
Rolou hoje à
noite a quarta sessão do II Encontro de Ficção Científica e Ensino de Ciências
— simpósio online semanal patrocinado neste setembro de 2020, ano I da
Covid-19, pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), coordenado pela equipe da professora
Anunciata Sawada e do tecnólogo Adílson Júnior.
Os apresentadores
desta quinta-feira foram Lúcia de La Rocque e Luís Paulo Piassi. A primeira é mestra em Biologia pela UERJ e em
Letras pela UFRJ, doutora em Ciências pelo Instituto de Biofísica da UFRJ, professora
e pesquisadora da FIOCRUZ (aposentada em 2018) e, sobretudo, líder informal, mas
inconteste, da comunidade amante da ficção científica no interior dessa instituição
e, portanto, uma espécie de fada madrinha da FC dentro da comunidade científica
brasileira. O segundo é graduado em
Física, com mestrado em Ensino de Ciências e doutorado em Educação, as três formações
pela USP; realiza estudos na área de comunicação e educação em ciências com
foco na ficção científica e fantasia; e é líder do Projeto Banca da Ciência.
Desta vez, a mediação
ficou por conta da própria Anunciata e a sessão se iniciou com rigorosa
pontualidade carioca.
Dentre os mais
de dois mil inscritos no site do II Encontro, em sua lotação máxima, havia cerca
de trezentas e trinta pessoas assistindo esta quarta sessão online. Ao longo de quase duas horas e meia de duração,
pessoas entravam e saíam do evento a todo instante. Ao fim, havia cento e cinquenta expectadores,
265 likes e nem um dislike (ao contrário das três sessões anteriores que
tiveram sempre um dislike solitário). Os
números citados foram bastante parecidos com os da sessão anterior.
Embora no cartaz
desta quarta sessão do II Encontro o nome da Lúcia aparecesse acima, Piassi foi
o primeiro a apresentar.
Essa quarta sessão
do II Encontro está disponível no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=s9LdbLPIhfE.
* *
*
Assim que Anunciata
apresentou o currículo de Luís Paulo Piassi, esse deu início à sua fala, “100
Anos de Isaac Asimov: Ciência, Ficção e Direitos Humanos”, aparentemente, da
varanda de sua casa.
Piassi foi o
primeiro e, até agora o único, apresentador a dispensar o uso do PowerPoint. O fato de falar direto à plateia digital deu
um toque de informalidade salutar à sua apresentação. Vários ouvintes comentaram no chat que se
sentiram como se estivessem à mesa de um barzinho com o professor.
Ele principiou
destacando a importância de Asimov não só como escritor de ficção científica, mas
também como divulgador da ciência. Lembrou
que o autor publicou mais títulos de divulgação do que de FC. Em seguida, aproveitando o ensejo de que
Asimov morreu de AIDS em 1992 (fato que a família do autor só divulgou quase
uma década mais tarde), Piassi traçou um paralelo entre os impactos sociais da
AIDS na década de 1980 e da Covid-19.
Logo no início
da apresentação, Frederico[1],
o cachorro do palestrante, latiu em protesto por ter sido excluído do evento,
obrigando Piassi a apaziguá-lo em off e mantê-lo preso noutro aposento para
tristeza de parte da plateia digital.
A cada obra de
Asimov citada, o palestrante mostrava a capa do romance ou coletânea. No caso da coletânea Eu, Robô, mostrou
a capa da edição da Expressão e Cultura (1974) que eu tenho aqui em casa. Aliás, a maioria dos títulos mostrados foram
de edições que habitam minhas estantes ou calabouços. De maneira geral, os livros do Piassi estão mais
bem conservados do que os meus. Inveja
terrível.
Piassi enuncia as Três Leis da Robótica em sua forma mais extensa, tal como aparece em Eu, Robô. Coteja brevemente os robôs asimovianos com a criatura de Frankenstein. Em seguida, comenta com spoilers o conto de Asimov “Sonhos de Robô”, publicado na coletânea homônima e se refere a Susan Calvin como “uma robopsicóloga sisuda”. Ao questionar a plateia se era justo destruir um robô que ousasse sonhar com a própria liberdade, como Elvex o faz nesse conto, Piassi me fez concluir que o mais injusto mesmo seria atribuir a uma criatura autoconsciente uma tarefa maçante, tediosa e indigna, que deveria, desde o início, ser delegada a um autômato. É justamente aí que, tanto do ponto de vista da plausibilidade científica quanto no que tange aos direitos humanos, muitas narrativas do Bom Doutor dão para o torto. Por que não delegar tarefas rotineiras e insípidas a meros autômatos? De qualquer forma, com indagações desse tipo, Piassi conduziu a temática crucial de sua fala à questão dos direitos humanos, que era justamente aonde desejava chegar.
Ao citar a noveleta
“O Homem Bicentenário” (1976) do Asimov, Piassi também menciona o filme homônimo
de 1999, dirigido por Chris Columbus e estrelado por Robin Williams e Sam Neill.[2]
No que se
refere ao textos de não ficção de Asimov, Piassi recomendou especialmente No
Mundo da Ficção Científica (1981), um livro de ensaios pessoais do autor
sobre FC, cuja tradução comete algumas escorregadelas hilárias. Em termos de divulgação científica, meus favoritos
pessoais ainda são O Universo (1966)[3]
e Escolha a Catástrofe (1979)[4].
Enfim, Piassi
concluiu com chave de ouro nesta época de eleições presidenciais norte-americanas,
comparando os imperialismos democrata e republicano. O primeiro seria exemplificado pelo universo ficcional
de Jornada nas Estrelas e o último pela animação da Disney, Rei Leão.
* * *
Entre a fala
de Piassi e a de Lúcia La Rocque, cumpre mencionar, mesmo que en passant,
os amigos e conhecidos presentes na plateia conectada que logrei identificar
pelo canto do olho lá no chat do evento: os escritores de literatura fantástica
Alexey Dodsworth e Ana Lúcia Merege. O astrobiólogo
Osame Kinouchi. Os professores Alexander
Meireles da Silva, do Fantasticursos e Naelton Araújo, do Planetário da Gávea. A prata da casa da FIOCRUZ: Adílson Júnior, Anunciata
Sawada, Sheila Assis e Telma Temoteo. Meus
correligionários do clube de leitura Vórtice Rio, Juliana Berlim e Ricardo França.
* * *
Após a apresentação
de seu currículo, Lúcia La Rocque abre a fala “Um Breve Passeio por Distopias
de uma Terra em Transe” agradecendo Anunciata pela preparação de seu PowerPoint
e nos brindando com a bela citação de Freeman Dyson, que tomo a liberdade de colocar
em epígrafe nesta crônica.
Em seguida, a fada madrinha da FC na academia abordou as pandemias em geral e a Covid-19 em particular como distopias. Distopias cum pandemias é um tópico que, do ponto de vista da análise histórica da ficção científica, não faria sentido se não citasse o papel de precursor do romance O Último Homem (1826)[5] de Mary Shelley na temática da pandemia que extingue a humanidade, uma análise que Lúcia estabelece com lucidez, brilhantismo e simplicidade. Daí, rende-se ao ensejo irresistível de traçar um paralelo para lá de pertinente entre as duas obras de Shelley na literatura fantástica: Frankenstein e O Último Homem.
Após mencionar as narrativas distópicas expressas nos romances Admirável Mundo Novo (1932) de Aldous Huxley; 1984 (1949) de George Orwell e O Conto da Aia (1985) de Margaret Atwood, Lúcia compara outro romance distópico dessa autora, MaddAddam (2013)[6], com O Último Homem, frisando que, ao contrário desse último, MaddAddam constitui um bom exemplo da temática do Complexo de Frankenstein na literatura fantástica.
Após uma
pincelada breve, mas pertinente, nos filmes de ficção científica que abordam a temática
da pandemia, Lúcia encerra sua fala categoricamente com o poema “Congresso Internacional
do Medo”, de Carlos Drummond de Andrade.
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Findas as
palestras, a mediadora lança aos participantes as perguntas e comentários da
plateia digital, colocadas no chat ao longo das apresentações.
Ante à questão
se estaríamos vivendo uma distopia pandêmica, Lúcia responde que a classificação
de um texto como distopia ou utopia depende um pouco das naturezas dos
personagens e dos leitores.
Aproveitando o
gancho da citação de Rei Leão por Piassi, Anunciata indaga se o clássico
da Disney não seria, em verdade, um plágio do mangá e anime japonês Kimba.[7] Pelo que se comentou, fiquei com a impressão nítida
de que é plágio, sim.
Quando alguém da plateia indaga sobre a suposta misoginia presente na obra ficcional de Asimov, Piassi sagazmente escapa pela tangente. Imagino se integrantes da plateia não estariam confundindo o comportamento do Bom Doutor (velhas histórias de assédios e traseiros femininos beliscados em elevadores)[8] com a ausência de relevância das personagens femininas na obra de Asimov. Sobretudo, nas narrativas escritas antes de 1970.
A partir do
questionamento de uma integrante da plateia, Piassi compara as Três Leis da Robótica
com a Declaração dos Direitos Humanos e discute brevemente o que é humano. Aliás, em suas três instâncias, duas literárias
e uma cinematográfica, O Homem Bicentenário se esforça um bocado para
esboçar uma resposta provisória a essa exata questão.
* *
*
Dois grandes especialistas
no ensino das ciências com o emprego da ficção científica nos brindaram esta
noite com duas palestras excelentes, daquelas que deixam a plateia triste
quando o espetáculo acaba, com o espírito repleto com um gostinho de
quero-mais.
Enfim, concluída
esta quarta e penúltima sessão do II Encontro de Ficção Científica e Ensino de Ciências,
já começa a bater uma ponta de saudades.
Espero que haja um III Encontro em 2021.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 24 de setembro de 2020 (quinta-feira).
Participantes:
Adílson Júnior.
Alexander Meireles
da Silva (Fantasticursos).
Alexey Dodsworth.
Ana Lúcia
Merege.
Anunciata Sawada
(coordenadora e moderadora).
Gerson
Lodi-Ribeiro.
Juliana Berlim.
Lúcia de La Rocque
(apresentadora).
Luís Paulo Piassi
(apresentador).
Naelton Araújo
(Planetário da Gávea).
Osami Kinouchi.
Ricardo França.
Sheila Assis.
Telma Temoteo.
[1]. Segundo Piassi,
uma homenagem a Fred Mercury que, como ele destacou, também morreu de AIDS.
[2]. Esse filme se
baseou não só na noveleta como no romance O Homem Positrônico (1992),
escrito por Robert Silverberg e Isaac Asimov.
Em verdade, com a anuência de Asimov, Silverberg reescreveu a noveleta original,
expandindo-a sob a forma de romance. A
maior diferença entre esses dois textos é a grande ênfase na psicologia interna
do protagonista Andrew Martin, sobretudo em sua mudança gradativa, da
mentalidade robótica padronizada até o humano artificial criativo e genial. Em suma, o romance narra essencialmente a mesma
história que a noveleta, só que mais bem contada.
[3]. História da Astronomia
em um único volume. Abrangente e completo. Abordagem histórica impecável, desde a
Antiguidade Clássica até 1966 EC. Uma obra
que me influenciou bastante a almejar cursar Astronomia.
[4]. Exposição de
todas as catástrofes, de todos os tipos possíveis, que se podem abater sobre a
humanidade. O livro se divide em cinco
partes, conforme o autor classifica as catástrofes em graus de um a cinco, das
mais gerais, inevitáveis e remotas até as mais específicas, em princípio
evitáveis e mais próximas: 1) primeiro grau - destruição do Universo; 2) segundo grau - destruição do Sistema Solar; 3) terceiro
grau - destruição da Terra; 4) quarto grau - extinção da humanidade; e 5) quinto
grau - desaparecimento da civilização atual.
[5]. Nanorresenha extraída
do meu bunker de dados: O Último Homem (Landmark, 2010) – Romance
precursor das temáticas da pandemia que aniquila a humanidade e do último
humano sobre a Terra. Enredo ambientado
numa Europa do fim do século XXI (sobretudo na Grã-Bretanha) incrivelmente
semelhante à Europa da terceira década do século XIX, época em que o romance
foi escrito, exceto pelos fatos de haver transporte aéreo (através de
dirigíveis) e de a Grã-Bretanha ter se transformado numa república. É possível que essa seja uma terceira temática
precursora, ao menos no âmbito da literatura fantástica. Em seu todo, esta narrativa romântica é
pesada demais, maçante demais e, demasiadamente longa para o tamanho do enredo
que a autora se propõe contar. O que talvez
explique porque não obteve tanto êxito literário e comercial quanto
FRANKENSTEIN. O romance se divide em três
tomos, grosso modo, de mesmo tamanho. A
temática da pandemia só é introduzida ao fim do segundo tomo. O primeiro tomo trata, em essência, da
juventude e da educação do protagonista, bem como das experiências românticas
dele e de seus amigos e companheiras. O
segundo tomo trata das aventuras militares na Grécia do cunhado do
protagonista, observadas do ponto de vista deste último. Enfim, o terceiro tomo trata da chegada da
peste à Europa e suas consequências fatais: a extinção da civilização humana (Edição
bilíngue português-inglês).
[6]. MaddAddam também é o nome da trilogia homônima
dessa autora canadense, cujos romances são: Oryx e Crake (2003); Ano
do Dilúvio (2009); e MaddAddam (2013). Há edições em português para os dois
primeiros romances.
[7]. Como não fazia
a menor ideia o que se tratava, recorri à Wikipédia para poupar esse trabalho
aos poucos leitores tão ignorantes quanto este que lhes escreve: “Jungle Taitei, mais conhecido
no Ocidente como Kimba, o Leão Branco é um mangá de Osamu Tezuka, mais
tarde transformado em anime, que trata das relações entre o homem e a natureza
através da história do leão branco Kimba enquanto ele tenta governar a selva”.
[8]. Não me estenderei demasiado nessa polêmica candente. Aos interessados, sugiro a leitura dos
artigos abaixo:
·
Jay Gabler: “What to Make of Isaac Asimov, Sci-Fi
Giant and Dirty Old Man?”: https://lithub.com/what-to-make-of-isaac-asimov-sci-fi-giant-and-dirty-old-man/
·
Jim C. Hines: “Don’t Look Away: Fighting Sexual
Harassment in the Scifi/Fantasy Community”: https://io9.gizmodo.com/dont-look-away-fighting-sexual-harassment-in-the-scifi-1785704207
·
David Futrelle: “Isaac Asimov: Prolific author, even more
prolific sexual assaulter”: https://wehuntedthemammoth.com/2020/01/08/isaac-asimov-prolific-author-even-more-prolific-sexual-assaulter/
·
[Skeptics]: “Was
Isaac Asimov notorious for groping women?”: https://skeptics.stackexchange.com/questions/35028/was-isaac-asimov-notorious-for-groping-women
·
[Wikipedia]: Isaac Asimov: https://en.wikipedia.org/wiki/Isaac_Asimov#Behavior_towards_women