sexta-feira, 2 de outubro de 2020

 

II Encontro de

Ficção Científica e Ensino de Ciências

(FIOCRUZ)

Dia 5

 

202010012359P5 — 22.000 D.V.

 

“Até os erros presentes nos filmes de ficção científica podem trazer reflexões em sala de aula.”

[Madalena Mello e Silva]

 

Neste meu vigésimo segundo milésimo dia de vida, desenrolou-se hoje à noite a quinta e última sessão do já saudoso II Encontro de Ficção Científica e Ensino de Ciências (EFCEC) — o simpósio online semanal patrocinado durante o mês de setembro de 2020, ano I da Covid-19, pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), coordenado pela equipe da professora Anunciata Sawada e do tecnólogo Adílson Júnior.

Esta sessão se caracterizou por apresentações da valorosa prata da casa.

As apresentadoras desta quinta-feira foram a jovem Nayla Freire Martins, orientanda de iniciação científica da Anunciata; da mestra em Ensino de Biociências pela FIOCRUZ, Bruna Navarone Santos; e da professora Madalena Mello e Silva, também doutora por essa instituição, que tem usado filmes de ficção científica em sala de aula como ferramenta no ensino de ciências.

Desta vez a mediação ficou a cargo da própria Anunciata e de Fernanda Pereira-Silva.  Como de costume, a sessão se iniciou com rigorosa pontualidade carioca às 19h03, embora só estivesse marcada no YouTube para às 19h25.

Dentre os mais de dois mil inscritos no site do II Encontro, houve trezentos e cinco pessoas assistindo a sessão online em lotação de pico.  Ao longo das quase duas horas de duração, pessoas entravam e saíam do evento a torto e a direito.  Ao fim, havia cento e cinquenta expectadores e 240 curtidas.  Números, grosso modo, semelhantes aos das sessões anteriores.

No cartaz de divulgação desta quinta sessão, a palestra da Madalena aparecia acima da fala da Bruna e a participação da Nayla não era mencionada.  A ordem real das falas foi: primeiro Nayla, então a Bruna e enfim a Madalena.  As três empregaram o PowerPoint em suas apresentações, com compartilhamento de telas e tudo o mais.

Essa quinta sessão do II Encontro está disponível no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=oIRA67Z1aLM.

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Anunciata apresentou sua orientada como uma mãe-coruja e a plateia logo percebeu que a professora realmente tinha razões para se sentir orgulhosa.

A apresentação da Nayla, “Iniciação Científica: Relato de Experiência”, cumpriu a promessa expressa em seu próprio título: ao longo de cerca de dez minutos, ela relatou sua experiência como orientanda no programa de iniciação científica da FIOCRUZ, com ênfase na aprendizagem de ciência como atividade lúdica, com o emprego de animês e mangás.

O mais bacana da fala da Nayla foi observar o brilho de entusiasmo indisfarçável em seus olhos quando descreveu suas atividades no programa, as experiências de vida que adquiriu na instituição e, o mais importante de tudo: a paixão pela ciência, despertada por tais experiências.

A última sessão não poderia abrir de maneira mais inspiradora e auspiciosa.

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Finda a apresentação preambular da Nayla, Fernanda apresentou o currículo da segunda palestrante.  Bruna Navarone Santos é mestra em Ensino em Biociências e Saúde.  Porém, o mais importante é que ela deu uma aula sobre mangás e animês de ficção científica.

A apresentação da Bruna, “Representações de Ciência e Tecnologia no Animê e Mangá”, ensinou um bocado sobre essas duas formas de expressão artística japonesas, preenchendo as profundezas abissais da minha ignorância sobre tais assuntos.

Ela abriu sua fala com um sumário breve do contexto sociopolítico do mangá no Japão do pós-guerra.  Em seguida, comentou a contraposição das concepções de ciência japonesa e ocidental.

Para exemplificar, pinçou dois mangás de ficção científica clássicos, que mais tarde se tornaram animês de sucesso no Japão e mundo afora: Astro Boy e Nausicäa do Vale do Vento.

O mangá original Astro Boy (1955-1981), escrito e desenhado por Osamu Tezuka, narra as aventuras de um androide criado pelo Ministro da Ciência, Doutor Tenma, para substituir seu filho Tobio, que perdeu a vida em um acidente a bordo de um veículo autopilotado.  Bruna abordou com propriedade os símbolos e metáforas nos enredos de Astro Boy.  Um ponto curioso que ela comentou foi que os androides e robôs desse universo ficcional obedecem as Três Leis da Robótica, propostas por Isaac Asimov.

 

Astro Boy (mangá)


Mais tarde, ao analisar a narrativa pós-holocausto de Nausicäa do Vale do Vento, criação de Hayao Miyazaki, Bruna se deteve nas concepções de ciência e tecnologia do mangá e do animê nele inspirado.  A protagonista Nausicäa é uma princesa-cientista de um cenário pós-holocausto, ambientado num futuro remoto, que se envolve em explorações, aventuras e descobertas.  Como em Astro Boy, esse mangá de sucesso acabou se transformando em animê.

Ao fim de sua apresentação, Bruna colocou que “é preciso ressaltar que nesta tentativa de compreensão dessas narrativas no mangá e no animê não há intenção de buscar correspondência entre os fatos e as representações, mas expressar possíveis ideias, concepções de mundo, diante das tecnologias científicas.”

De todas as palestras que assisti no II Encontro, esta foi disparado a que mais me ensinou.

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Ao longo do relato da Nayla e das duas apresentações formais desta quinta sessão, sempre que possível, tentei passar os olhos pelo chat, para conferir o humor da galera e a lista de presentes.

Ali estavam meus amigos do Vórtice Rio, Adílson Júnior, Juliana Berlim e Ricardo França.  O Clube de Leitores de Ficção Científica se fez presente na figura de seu presidente, Luiz Felipe Vasques.  Os professores Naelton Araújo e Alexander Meireles da Silva compareceram representando o Planetário da Gávea e o Fantasticursos, respectivamente.  Palestrantes de sessões anteriores também estiveram presentes, como foram os casos de Octavio Aragão, Francisco Rômulo Monte Ferreira e da própria Juliana.  A escritora de fantasia Ana Lúcia Merege e o astrobiólogo Osame Kinouchi também deram o ar de sua graça.  E, é claro, não posso deixar de mencionar a prata da casa: Anunciata (que dobrava como mediadora e estimuladora do chat), Sheila Assis e Telma Temoteo.

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Anunciata apresentou o currículo da palestrante seguinte, Madalena Mello e Silva, professora-pesquisadora de Educação Básica na área de Ciências Biológicas e doutora em Ciência e Arte pela FIOCRUZ.

Em sua palestra “Cinema de Ficção Científica no ‘Chão da Escola’”, Madalena falou de suas vivências ao empregar o cinema de ficção científica como ferramenta de apoio no ensino de ciências, ao longo de um projeto implementado durante oito anos no Colégio Estadual Barão de Aiuruoca (CEBA), em Barra Mansa.[1]

Segundo Madalena, “chão de escola” é o espaço de construção e afirmação da identidade dos trabalhadores em educação.  Gostei.

Para exemplificar, no experimento que desenvolveu no CEBA, Madalena introduziu para seus alunos os conceitos das adaptações a mudanças climáticas a partir de Era do Gelo 1 (2002); do DNA e das mutações genéticas com Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros (1993); da evolução e da experimentação com animais de laboratório com Planeta dos Macacos: A Origem (2011); da degradação ambiental com Elysium (2013); da sustentabilidade com Avatar (2009); e assim por diante.

Madalena explicou que até mesmo os erros científicos presentes nos filmes exibidos aos alunos trouxeram reflexões em sala de aula.  Além disso, abordou brevemente a questão de em que ponto a ciência e a arte se encontram.

Em seguida, detalhou sua tese de doutorado, que versou justamente sobre o emprego do cinema de FC em sala de aula.  Falou também que o cinema de FC constitui uma ferramenta ideal não só para discutir questões ambientais e climatológicas, como, por exemplo, o aquecimento global antropogênico, quanto certas questões, ditas transversais, como desigualdades econômicas e sociais, sexualidade, superpopulação e outras.

Explicou a adoção da estratégia de exibir fragmentos de filmes em vez de narrativas cinematográficas completas, em prol do melhor aproveitamento do tempo em sala de aula.

Por fim, Madalena encerrou sua fala com um bordão muito feliz, que eu adoro, a ponto de o ter adotado em boa parte da ficção que escrevo:

— É tarde demais para ser pessimista!

Com perdão pelo abuso de um clichê para lá de surrado: essa última apresentação do II EFCEC fechou com chave de ouro esse grande evento de divulgação patrocinado pela FIOCRUZ.  Pronto: falei.

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Finda essa última palestra, Anunciata e Fernanda moderaram a já tradicional sessão de perguntas, reações e comentários da plateia digital.

Ante a questão irresistível da sexualização infantil, presente em alguns mangás, Bruna esclareceu que o fenômeno não é prevalente em mangás de FC.

Alguém na plateia comentou que Astro Boy poderia ser lido (ou assistido) como uma revisitação temática de Pinóquio, do autor italiano Carlo Collodi.  Todos concordaram que o comentário fazia certo sentido.

Outro alguém indagou à Madalena como implementar a ferramenta dos filmes de FC em escolas de nível médio acometidas por grave carência de recursos humanos e materiais.  A professora reconheceu que em algumas escolas não há condições de implementar a metodologia descrita em sua fala.

Ao fim dessa sessão participativa animada, podada pelas moderadoras por questão de exiguidade de tempo, sob pena das três apresentadoras estarem respondendo questões lá no YouTube até agora, por alguns breves instantes apresentou-se a propaganda institucional do bem sobre o Grupo de Estudos AMSEC (Animê, Mangá, e SciFi no Ensino de Ciências) da FIOCRUZ.



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Como tudo que é bom, acaba, encerrou-se o II EFCEC.  Um encerramento cum maxima lauda.  Como muitos participantes, sinto-me um pouco órfão dessa iniciativa criativa e original.  Aquele gostinho de “quero-mais”.

A notícia boa é que a equipe da FIOCRUZ prometeu tentar tornar o Encontro um evento anual no calendário da instituição.  Torço para que essa proposta alvissareira se concretize.

Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 1º de outubro de 2020 (quinta-feira).

 


Participantes:

Adílson Júnior.

Alexander Meireles da Silva (Fantasticursos).

Ana Lúcia Merege.

Anunciata Sawada (coordenadora e moderadora).

Bruna Navarone Santos (apresentadora).

Fernanda Pereira-Silva (moderadora).

Francisco Rômulo Monte Ferreira.

Gerson Lodi-Ribeiro.

Juliana Berlim.

Luiz Felipe Vasques (Clube de Leitores de Ficção Científica).

Madalena Mello e Silva (apresentadora).

Naelton Araújo (Planetário da Gávea).

Nayla Freire Martins (apresentadora).

Octavio Aragão.

Osame Kinouchi.

Ricardo França.

Sheila Assis.

Telma Temoteo.

 



[1].  Imagino se Madalena não terá se inspirado no clássico Fantastic Voyages: Learning Science through Science Fiction Films (Springer-Verlag, 2004), de L.W. Dubeck, S.E. Moshier e J.E. Boss.  Não me espantaria se essa obra estivesse presente nas referências da sua tese de doutorado.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

 

II Encontro de

Ficção Científica e Ensino de Ciências

(FIOCRUZ)

Dia 4

 

202009242359P5 — 21.993 D.V.

 

“Descobri que a ficção científica é mais esclarecedora do que a ciência para compreender como a tecnologia é vista por pessoas situadas fora da elite pedagógica.  Se a ciência proporciona o input técnico para a tecnologia; a ficção científica nos exibe o output humano.”

[Freeman Dyson]

 

Rolou hoje à noite a quarta sessão do II Encontro de Ficção Científica e Ensino de Ciências — simpósio online semanal patrocinado neste setembro de 2020, ano I da Covid-19, pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), coordenado pela equipe da professora Anunciata Sawada e do tecnólogo Adílson Júnior.

Os apresentadores desta quinta-feira foram Lúcia de La Rocque e Luís Paulo Piassi.  A primeira é mestra em Biologia pela UERJ e em Letras pela UFRJ, doutora em Ciências pelo Instituto de Biofísica da UFRJ, professora e pesquisadora da FIOCRUZ (aposentada em 2018) e, sobretudo, líder informal, mas inconteste, da comunidade amante da ficção científica no interior dessa instituição e, portanto, uma espécie de fada madrinha da FC dentro da comunidade científica brasileira.  O segundo é graduado em Física, com mestrado em Ensino de Ciências e doutorado em Educação, as três formações pela USP; realiza estudos na área de comunicação e educação em ciências com foco na ficção científica e fantasia; e é líder do Projeto Banca da Ciência.

Desta vez, a mediação ficou por conta da própria Anunciata e a sessão se iniciou com rigorosa pontualidade carioca.

Dentre os mais de dois mil inscritos no site do II Encontro, em sua lotação máxima, havia cerca de trezentas e trinta pessoas assistindo esta quarta sessão online.  Ao longo de quase duas horas e meia de duração, pessoas entravam e saíam do evento a todo instante.  Ao fim, havia cento e cinquenta expectadores, 265 likes e nem um dislike (ao contrário das três sessões anteriores que tiveram sempre um dislike solitário).  Os números citados foram bastante parecidos com os da sessão anterior.

Embora no cartaz desta quarta sessão do II Encontro o nome da Lúcia aparecesse acima, Piassi foi o primeiro a apresentar.

Essa quarta sessão do II Encontro está disponível no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=s9LdbLPIhfE.

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Assim que Anunciata apresentou o currículo de Luís Paulo Piassi, esse deu início à sua fala, “100 Anos de Isaac Asimov: Ciência, Ficção e Direitos Humanos”, aparentemente, da varanda de sua casa.

Piassi foi o primeiro e, até agora o único, apresentador a dispensar o uso do PowerPoint.  O fato de falar direto à plateia digital deu um toque de informalidade salutar à sua apresentação.  Vários ouvintes comentaram no chat que se sentiram como se estivessem à mesa de um barzinho com o professor.

Ele principiou destacando a importância de Asimov não só como escritor de ficção científica, mas também como divulgador da ciência.  Lembrou que o autor publicou mais títulos de divulgação do que de FC.  Em seguida, aproveitando o ensejo de que Asimov morreu de AIDS em 1992 (fato que a família do autor só divulgou quase uma década mais tarde), Piassi traçou um paralelo entre os impactos sociais da AIDS na década de 1980 e da Covid-19.

Logo no início da apresentação, Frederico[1], o cachorro do palestrante, latiu em protesto por ter sido excluído do evento, obrigando Piassi a apaziguá-lo em off e mantê-lo preso noutro aposento para tristeza de parte da plateia digital.

A cada obra de Asimov citada, o palestrante mostrava a capa do romance ou coletânea.  No caso da coletânea Eu, Robô, mostrou a capa da edição da Expressão e Cultura (1974) que eu tenho aqui em casa.  Aliás, a maioria dos títulos mostrados foram de edições que habitam minhas estantes ou calabouços.  De maneira geral, os livros do Piassi estão mais bem conservados do que os meus.  Inveja terrível.


Piassi enuncia as Três Leis da Robótica em sua forma mais extensa, tal como aparece em Eu, Robô.  Coteja brevemente os robôs asimovianos com a criatura de Frankenstein.  Em seguida, comenta com spoilers o conto de Asimov “Sonhos de Robô”, publicado na coletânea homônima e se refere a Susan Calvin como “uma robopsicóloga sisuda”.  Ao questionar a plateia se era justo destruir um robô que ousasse sonhar com a própria liberdade, como Elvex o faz nesse conto, Piassi me fez concluir que o mais injusto mesmo seria atribuir a uma criatura autoconsciente uma tarefa maçante, tediosa e indigna, que deveria, desde o início, ser delegada a um autômato.  É justamente aí que, tanto do ponto de vista da plausibilidade científica quanto no que tange aos direitos humanos, muitas narrativas do Bom Doutor dão para o torto.  Por que não delegar tarefas rotineiras e insípidas a meros autômatos?  De qualquer forma, com indagações desse tipo, Piassi conduziu a temática crucial de sua fala à questão dos direitos humanos, que era justamente aonde desejava chegar.

Ao citar a noveleta “O Homem Bicentenário” (1976) do Asimov, Piassi também menciona o filme homônimo de 1999, dirigido por Chris Columbus e estrelado por Robin Williams e Sam Neill.[2]




No que se refere ao textos de não ficção de Asimov, Piassi recomendou especialmente No Mundo da Ficção Científica (1981), um livro de ensaios pessoais do autor sobre FC, cuja tradução comete algumas escorregadelas hilárias.  Em termos de divulgação científica, meus favoritos pessoais ainda são O Universo (1966)[3] e Escolha a Catástrofe (1979)[4].

Enfim, Piassi concluiu com chave de ouro nesta época de eleições presidenciais norte-americanas, comparando os imperialismos democrata e republicano.  O primeiro seria exemplificado pelo universo ficcional de Jornada nas Estrelas e o último pela animação da Disney, Rei Leão.

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Entre a fala de Piassi e a de Lúcia La Rocque, cumpre mencionar, mesmo que en passant, os amigos e conhecidos presentes na plateia conectada que logrei identificar pelo canto do olho lá no chat do evento: os escritores de literatura fantástica Alexey Dodsworth e Ana Lúcia Merege.  O astrobiólogo Osame Kinouchi.  Os professores Alexander Meireles da Silva, do Fantasticursos e Naelton Araújo, do Planetário da Gávea.  A prata da casa da FIOCRUZ: Adílson Júnior, Anunciata Sawada, Sheila Assis e Telma Temoteo.  Meus correligionários do clube de leitura Vórtice Rio, Juliana Berlim e Ricardo França.

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Após a apresentação de seu currículo, Lúcia La Rocque abre a fala “Um Breve Passeio por Distopias de uma Terra em Transe” agradecendo Anunciata pela preparação de seu PowerPoint e nos brindando com a bela citação de Freeman Dyson, que tomo a liberdade de colocar em epígrafe nesta crônica.

Em seguida, a fada madrinha da FC na academia abordou as pandemias em geral e a Covid-19 em particular como distopias.  Distopias cum pandemias é um tópico que, do ponto de vista da análise histórica da ficção científica, não faria sentido se não citasse o papel de precursor do romance O Último Homem (1826)[5] de Mary Shelley na temática da pandemia que extingue a humanidade, uma análise que Lúcia estabelece com lucidez, brilhantismo e simplicidade.  Daí, rende-se ao ensejo irresistível de traçar um paralelo para lá de pertinente entre as duas obras de Shelley na literatura fantástica: Frankenstein e O Último Homem.




Após mencionar as narrativas distópicas expressas nos romances Admirável Mundo Novo (1932) de Aldous Huxley; 1984 (1949) de George Orwell e O Conto da Aia (1985) de Margaret Atwood, Lúcia compara outro romance distópico dessa autora, MaddAddam (2013)[6], com O Último Homem, frisando que, ao contrário desse último, MaddAddam constitui um bom exemplo da temática do Complexo de Frankenstein na literatura fantástica.



Após uma pincelada breve, mas pertinente, nos filmes de ficção científica que abordam a temática da pandemia, Lúcia encerra sua fala categoricamente com o poema “Congresso Internacional do Medo”, de Carlos Drummond de Andrade.

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Findas as palestras, a mediadora lança aos participantes as perguntas e comentários da plateia digital, colocadas no chat ao longo das apresentações.

Ante à questão se estaríamos vivendo uma distopia pandêmica, Lúcia responde que a classificação de um texto como distopia ou utopia depende um pouco das naturezas dos personagens e dos leitores.

Aproveitando o gancho da citação de Rei Leão por Piassi, Anunciata indaga se o clássico da Disney não seria, em verdade, um plágio do mangá e anime japonês Kimba.[7]  Pelo que se comentou, fiquei com a impressão nítida de que é plágio, sim.

Quando alguém da plateia indaga sobre a suposta misoginia presente na obra ficcional de Asimov, Piassi sagazmente escapa pela tangente.  Imagino se integrantes da plateia não estariam confundindo o comportamento do Bom Doutor (velhas histórias de assédios e traseiros femininos beliscados em elevadores)[8] com a ausência de relevância das personagens femininas na obra de Asimov.  Sobretudo, nas narrativas escritas antes de 1970.

A partir do questionamento de uma integrante da plateia, Piassi compara as Três Leis da Robótica com a Declaração dos Direitos Humanos e discute brevemente o que é humano.  Aliás, em suas três instâncias, duas literárias e uma cinematográfica, O Homem Bicentenário se esforça um bocado para esboçar uma resposta provisória a essa exata questão.

 



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Dois grandes especialistas no ensino das ciências com o emprego da ficção científica nos brindaram esta noite com duas palestras excelentes, daquelas que deixam a plateia triste quando o espetáculo acaba, com o espírito repleto com um gostinho de quero-mais.

Enfim, concluída esta quarta e penúltima sessão do II Encontro de Ficção Científica e Ensino de Ciências, já começa a bater uma ponta de saudades.  Espero que haja um III Encontro em 2021.

Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 24 de setembro de 2020 (quinta-feira).

 


Participantes:

Adílson Júnior.

Alexander Meireles da Silva (Fantasticursos).

Alexey Dodsworth.

Ana Lúcia Merege.

Anunciata Sawada (coordenadora e moderadora).

Gerson Lodi-Ribeiro.

Juliana Berlim.

Lúcia de La Rocque (apresentadora).

Luís Paulo Piassi (apresentador).

Naelton Araújo (Planetário da Gávea).

Osami Kinouchi.

Ricardo França.

Sheila Assis.

Telma Temoteo.

 



[1].  Segundo Piassi, uma homenagem a Fred Mercury que, como ele destacou, também morreu de AIDS.

[2].  Esse filme se baseou não só na noveleta como no romance O Homem Positrônico (1992), escrito por Robert Silverberg e Isaac Asimov.  Em verdade, com a anuência de Asimov, Silverberg reescreveu a noveleta original, expandindo-a sob a forma de romance.  A maior diferença entre esses dois textos é a grande ênfase na psicologia interna do protagonista Andrew Martin, sobretudo em sua mudança gradativa, da mentalidade robótica padronizada até o humano artificial criativo e genial.  Em suma, o romance narra essencialmente a mesma história que a noveleta, só que mais bem contada.


[3].  História da Astronomia em um único volume.  Abrangente e completo.  Abordagem histórica impecável, desde a Antiguidade Clássica até 1966 EC.  Uma obra que me influenciou bastante a almejar cursar Astronomia.

[4].  Exposição de todas as catástrofes, de todos os tipos possíveis, que se podem abater sobre a humanidade.  O livro se divide em cinco partes, conforme o autor classifica as catástrofes em graus de um a cinco, das mais gerais, inevitáveis e remotas até as mais específicas, em princípio evitáveis e mais próximas: 1) primeiro grau - destruição do Universo; 2) segundo  grau - destruição do Sistema Solar; 3) terceiro grau - destruição da Terra; 4) quarto grau - extinção da humanidade; e 5) quinto grau - desaparecimento da civilização atual.

[5].  Nanorresenha extraída do meu bunker de dados: O Último Homem (Landmark, 2010) – Romance precursor das temáticas da pandemia que aniquila a humanidade e do último humano sobre a Terra.  Enredo ambientado numa Europa do fim do século XXI (sobretudo na Grã-Bretanha) incrivelmente semelhante à Europa da terceira década do século XIX, época em que o romance foi escrito, exceto pelos fatos de haver transporte aéreo (através de dirigíveis) e de a Grã-Bretanha ter se transformado numa república.  É possível que essa seja uma terceira temática precursora, ao menos no âmbito da literatura fantástica.  Em seu todo, esta narrativa romântica é pesada demais, maçante demais e, demasiadamente longa para o tamanho do enredo que a autora se propõe contar.  O que talvez explique porque não obteve tanto êxito literário e comercial quanto FRANKENSTEIN.  O romance se divide em três tomos, grosso modo, de mesmo tamanho.  A temática da pandemia só é introduzida ao fim do segundo tomo.  O primeiro tomo trata, em essência, da juventude e da educação do protagonista, bem como das experiências românticas dele e de seus amigos e companheiras.  O segundo tomo trata das aventuras militares na Grécia do cunhado do protagonista, observadas do ponto de vista deste último.  Enfim, o terceiro tomo trata da chegada da peste à Europa e suas consequências fatais: a extinção da civilização humana (Edição bilíngue português-inglês).

[6].  MaddAddam também é o nome da trilogia homônima dessa autora canadense, cujos romances são: Oryx e Crake (2003); Ano do Dilúvio (2009); e MaddAddam (2013).  Há edições em português para os dois primeiros romances.

[7].  Como não fazia a menor ideia o que se tratava, recorri à Wikipédia para poupar esse trabalho aos poucos leitores tão ignorantes quanto este que lhes escreve: “Jungle Taitei, mais conhecido no Ocidente como Kimba, o Leão Branco é um mangá de Osamu Tezuka, mais tarde transformado em anime, que trata das relações entre o homem e a natureza através da história do leão branco Kimba enquanto ele tenta governar a selva”.

[8].  Não me estenderei demasiado nessa polêmica candente.  Aos interessados, sugiro a leitura dos artigos abaixo:

·          Jay Gabler: “What to Make of Isaac Asimov, Sci-Fi Giant and Dirty Old Man?”: https://lithub.com/what-to-make-of-isaac-asimov-sci-fi-giant-and-dirty-old-man/

·          Jim C. Hines: “Don’t Look Away: Fighting Sexual Harassment in the Scifi/Fantasy Community”: https://io9.gizmodo.com/dont-look-away-fighting-sexual-harassment-in-the-scifi-1785704207

·          David Futrelle: “Isaac Asimov: Prolific author, even more prolific sexual assaulter”: https://wehuntedthemammoth.com/2020/01/08/isaac-asimov-prolific-author-even-more-prolific-sexual-assaulter/

·          [Skeptics]: “Was Isaac Asimov notorious for groping women?”: https://skeptics.stackexchange.com/questions/35028/was-isaac-asimov-notorious-for-groping-women

·           [Wikipedia]: Isaac Asimov: https://en.wikipedia.org/wiki/Isaac_Asimov#Behavior_towards_women

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

 

Estranho numa

Terra Estranha

no Vórtice Rio

 

202009210830P2 — 21.990 D.V.

 

“Ler ficção científica é ler Simak.  O leitor que não gosta dos contos de Simak não gosta de ficção científica.”

[Robert A. Heinlein em discurso proferido na cerimônia de premiação de Clifford D. Simak como Grand Master Nebula em 1977]

 

Realizamos anteontem à tarde nossa quinta reunião do Vórtice Rio sob a égide da Covid-19.[1]  Iniciei o evento com pontualidade carioca às 15h00.  Como o bate-papo estava animado, convocamos três outras etapas (pois a sessão do Zoom gratuito dura apenas meia hora, com uma tolerância adicional de dez minutos) e o encontro durou quase até as dezoito horas.

Desta vez todos os outros cinco participantes conseguiram se conectar em questão de cinco ou dez minutos.  Compareceram à reunião, por ordem de chegada (ao que eu me lembre): Ricardo França; Adílson Júnior; Luiz Felipe Vasques; Juliana Berlim; e Daniel Russell Ribas.  Além disso, contamos com a presença de um consultor especialmente convidado, Daniel Braga, responsável pelo canal do YouTube, O Canto do Gárgula, que compareceu na quarta e última etapa do evento para indicar narrativas de horror literário que analisaremos no mês que vem.

O romance escolhido para setembro foi Estranho numa Terra Estranha (1961), de Robert A. Heinlein.  Alguns de nós leram a edição da Artenova (1973), traduzida por José Sanz.  Outros leram a edição da Aleph (2017), com tradução de Edmo Suassuna.  Em 1976, li esse romance na edição da Artenova, que conservo comigo até hoje.  Quarenta e quatro anos mais tarde, reli na edição da Aleph, para essa discussão do Vórtice.



          

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Abrimos a reunião debatendo se Robert A. Heinlein seria um liberal anarquista, adepto do amor livre, capaz de escrever Estranho numa Terra Estranha (1961)[2], romance cult, que se tornou uma espécie de Bíblia da contracultura norte-americana da década de 1960 em geral e do movimento hippie em particular; ou um autor militarista e conservador, capaz de escrever Tropas Estelares (1959), publicado apenas dois anos antes.  Ou, quem sabe, Heinlein não era bem uma coisa e nem outra, mas só um escritor danado de bom?  Esse enigma é parcialmente respondido no material não ficcional incluído ao fim da edição da Aleph, onde a longa gênese de Estranho numa Terra Estranha é detalhada.  O manuscrito teria sido concluído mais de uma década antes de sua publicação original.  Heinlein não o publicou ao longo da década de 1950 porque não havia clima político e cultural para a crítica e o público leitor aceitarem o romance.

Só para provocar meus amigos, declarei que a melhor frase jamais proferida por Heinlein foi ouvida no discurso em que ele homenageou Clifford D. Simak quando esse autor recebeu a premiação Grand Master Nebula, concedida pela Science Fiction and Fantasy Writers of América (SFWA) em 1977.  O próprio Heinlein fora o primeiro escritor a ser agraciado com essa honraria em 1975.  Jack Williamson foi o segundo e Clifford D. Simak, o terceiro.  Como alguns dos mais novos só conheciam o Simak de ouvirem falar, recomendei a leitura de seu romance Way Station (1963) e do fix-up City (1952), além de sugerir a série de dezesseis volumes, catorze dos quais já publicados, The Complete Short Fiction of Clifford D. Simak, e lhes ofereci para fornecer duas crônicas pessoais não publicadas que escrevi sobre os contos e noveletas dessas catorze coletâneas já publicadas.

Porém, voltando ao Heinlein, debatemos se Estranho numa Terra Estranha seria ficção científica genuína, fantasia científica, ou simplesmente fantasia, conforme alegado na capa da edição brasileira publicada pela Artenova.  Advoguei o argumento de que a natureza dos poderes paranormais ou psiônicos do protagonista Valentine Michael Smith — um órfão humano criado por marcianos — parecia mais mágica do que científica.  Sobretudo, se levarmos em conta a tese heinleiniana, segundo a qual humanos poderiam adquirir tais poderes com facilidade, bastando para tanto, aprenderem o idioma marciano.  Meus amigos lembraram de Louise Banks, protagonista do filme A Chegada (2016) de Denis Villeneuve, inspirado na novela História da Sua Vida (2002) do Ted Chiang, que aprende a visualizar passado, presente e futuro como uma coisa só, ao aprender a pensar no idioma de uma civilização alienígena que visitava a Terra.  Rebati que aprender a enxergar o fluxo espaçotemporal de uma outra maneira ao aprender a pensar de forma diversa, graças a um idioma alienígena não é o mesmo que ser capaz de ler pensamentos alheios, mover objetos à distância, ou se teletransportar.  Além disso, Heinlein propõe a existência de vida após a morte no bom e velho estilo judaico-cristão, com anjos, inclusive, o que, por si só, talvez já caracterize o romance como fantasia.

Tal discussão nos conduziu a outra, mais geral: O que é ficção científica, afinal?  Com o consequente cotejo das mais diversas definições da FC.  Lembrei um caso hilário de um sócio paulistano do Clube de Leitores de Ficção Científica da década de 1980, que insistia que Branca de Neve e os Sete Anões era FC porque a protagonista ficava em “suspensão animada” (SIC).  Piedosos, outros sócios esclareceram ao incauto que: 1) era “animação suspensa”; 2) “suspensão animada” talvez fosse uma tecnologia automotiva avançada, que andava sendo experimentada na Fórmula 1; e 3) o fato de exibir uns poucos tropos típicos da ficção científica não faz, por si só, que a narrativa se torne FC.

Um dos participantes da reunião de anteontem, não lembro qual, comentou que, em novembro 2016, o SyFy Channel anunciou que produziria uma adaptação do Estranho numa Terra Estranha.  De lá para cá, ao que me consta, não há novidades nesse front.

Também discutimos discordâncias entre as traduções de Sanz e Suassuna.  Por exemplo, quando o personagem Jubal Harshaw, alter ego de Heinlein, desejava convocar uma das suas três ou quatro secretárias, empregava sempre o mesmo bordão:

— Front!

Na tradução da Artenova, José Sanz empregou:

— Seguinte!

Ao passo que Edmo Suassuna usou:

— À frente!

Já na edição portuguesa da Europa-América (1982), a tradutora Luisa Rodrigues adotou a solução fastidiosa, porém tecnicamente correta, conquanto descompromissada com a proposta semântica do autor, ao converter a exclamação em pergunta:

— Quem é que está de serviço?

 

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Além da discussão do romance de setembro, conversamos um bocado sobre os bastidores do II Encontro de Ficção Científica e Ensino de Ciências, simpósio semanal, organizado pela professora Anunciata Sawada e pelo Adílson Júnior sob os auspícios da FIOCRUZ, que tem ido ao ar pelo YouTube todas as quintas-feiras às 19h00.

Bastidores por bastidores, Juliana comentou que a apresentação do Dia 1 do II Encontro, que apresentei junto com Rômulo Ferreira, já estava com mais de duas mil e duzentas visualizações.  Além disso, esclareceu os motivos do atraso da apresentação que ela própria participou no Dia 3 do Encontro.  Comentamos e elogiamos a premiação do Projeto Clube de Leitores Neuromancers — tema da apresentação dela — na categoria Ensino Médio do Prêmio Paulo Freire 2019.  Ela nunca nos falara dessa premiação e só soubemos do fato quando a moderadora do Dia 3 leu o currículo dela para nós...

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Na última etapa deste encontro mensal, pudemos contar com a presença egrégia de Daniel Braga, responsável pelo canal O Canto do Gárgula, dedicado à literatura de horror.  Daniel compareceu atendendo ao pedido do Luiz Felipe Vasques, para sugerir livros para lermos para a reunião do mês que vem, uma vez que outubro é originalmente o mês consagrado ao horror literário no Vórtice Rio.  Dentre as várias sugestões pertinentes, selecionamos a noveleta O Balé das Aves Mortas (Skript, 2019) de Larissa Prado e Quarto 502 (Selo Covil, 2016) de M. Sardini.  Duas autoras brasileiras, portanto.  Até porque, como diz o Ancelmo Gois, “Halloween é o cacete!”  Embora tenhamos ficado balançados pelo fix-up Território Lovecraft do Matt Ruff, resolvemos deixar esse título, também descrito pelo Daniel, para uma próxima oportunidade.





Por volta das 18h00, enfim encerramos a quarta e última etapa desse que foi, em minha opinião, o encontro mais divertido desta nossa fase digital.

Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2020 (segunda-feira).

 


Participantes:

Adílson Júnior.

Daniel Russell Ribas.

Gerson Lodi-Ribeiro.

Juliana Berlim.

Luiz Felipe Vasques.

Ricardo França.

Daniel Braga, de O Canto do Gárgula (consultor especialmente convidado).

 



[1].  Em nosso primeiro encontro digital (maio), destrinchamos os romances Encontro com Rama (1973) de Arthur C. Clarke e Os Testamentos (Rocco, 2019) de Margaret Atwood.  No segundo (junho), analisamos a novela O Auto da Maga Josefa (Dame Blanche, 2018) de Paola Siviero.  No terceiro (julho), foi a vez do romance seminal, Frankenstein (1818) de Mary Shelley.  No penúltimo encontro (agosto), debatemos o romance bestseller Ártemis (Arqueiro, 2019) de Andy Weir.

[2].  Nanorresenha extraída do meu bunker de dados: Estranho numa Terra Estranha – Humano criado por marcianos inicia revolução social numa Terra cuja ética fora há muito degradada.  Sátira e alegoria deliciosas, bem ao estilo do autor.  Cultbook de uma geração.  Isto posto, o alter ego de Heinlein, Jubal Harshaw, é o falastrão mais pretensioso jamais criado pela ficção científica literária.