sexta-feira, 25 de setembro de 2020

 

II Encontro de

Ficção Científica e Ensino de Ciências

(FIOCRUZ)

Dia 4

 

202009242359P5 — 21.993 D.V.

 

“Descobri que a ficção científica é mais esclarecedora do que a ciência para compreender como a tecnologia é vista por pessoas situadas fora da elite pedagógica.  Se a ciência proporciona o input técnico para a tecnologia; a ficção científica nos exibe o output humano.”

[Freeman Dyson]

 

Rolou hoje à noite a quarta sessão do II Encontro de Ficção Científica e Ensino de Ciências — simpósio online semanal patrocinado neste setembro de 2020, ano I da Covid-19, pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), coordenado pela equipe da professora Anunciata Sawada e do tecnólogo Adílson Júnior.

Os apresentadores desta quinta-feira foram Lúcia de La Rocque e Luís Paulo Piassi.  A primeira é mestra em Biologia pela UERJ e em Letras pela UFRJ, doutora em Ciências pelo Instituto de Biofísica da UFRJ, professora e pesquisadora da FIOCRUZ (aposentada em 2018) e, sobretudo, líder informal, mas inconteste, da comunidade amante da ficção científica no interior dessa instituição e, portanto, uma espécie de fada madrinha da FC dentro da comunidade científica brasileira.  O segundo é graduado em Física, com mestrado em Ensino de Ciências e doutorado em Educação, as três formações pela USP; realiza estudos na área de comunicação e educação em ciências com foco na ficção científica e fantasia; e é líder do Projeto Banca da Ciência.

Desta vez, a mediação ficou por conta da própria Anunciata e a sessão se iniciou com rigorosa pontualidade carioca.

Dentre os mais de dois mil inscritos no site do II Encontro, em sua lotação máxima, havia cerca de trezentas e trinta pessoas assistindo esta quarta sessão online.  Ao longo de quase duas horas e meia de duração, pessoas entravam e saíam do evento a todo instante.  Ao fim, havia cento e cinquenta expectadores, 265 likes e nem um dislike (ao contrário das três sessões anteriores que tiveram sempre um dislike solitário).  Os números citados foram bastante parecidos com os da sessão anterior.

Embora no cartaz desta quarta sessão do II Encontro o nome da Lúcia aparecesse acima, Piassi foi o primeiro a apresentar.

Essa quarta sessão do II Encontro está disponível no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=s9LdbLPIhfE.

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Assim que Anunciata apresentou o currículo de Luís Paulo Piassi, esse deu início à sua fala, “100 Anos de Isaac Asimov: Ciência, Ficção e Direitos Humanos”, aparentemente, da varanda de sua casa.

Piassi foi o primeiro e, até agora o único, apresentador a dispensar o uso do PowerPoint.  O fato de falar direto à plateia digital deu um toque de informalidade salutar à sua apresentação.  Vários ouvintes comentaram no chat que se sentiram como se estivessem à mesa de um barzinho com o professor.

Ele principiou destacando a importância de Asimov não só como escritor de ficção científica, mas também como divulgador da ciência.  Lembrou que o autor publicou mais títulos de divulgação do que de FC.  Em seguida, aproveitando o ensejo de que Asimov morreu de AIDS em 1992 (fato que a família do autor só divulgou quase uma década mais tarde), Piassi traçou um paralelo entre os impactos sociais da AIDS na década de 1980 e da Covid-19.

Logo no início da apresentação, Frederico[1], o cachorro do palestrante, latiu em protesto por ter sido excluído do evento, obrigando Piassi a apaziguá-lo em off e mantê-lo preso noutro aposento para tristeza de parte da plateia digital.

A cada obra de Asimov citada, o palestrante mostrava a capa do romance ou coletânea.  No caso da coletânea Eu, Robô, mostrou a capa da edição da Expressão e Cultura (1974) que eu tenho aqui em casa.  Aliás, a maioria dos títulos mostrados foram de edições que habitam minhas estantes ou calabouços.  De maneira geral, os livros do Piassi estão mais bem conservados do que os meus.  Inveja terrível.


Piassi enuncia as Três Leis da Robótica em sua forma mais extensa, tal como aparece em Eu, Robô.  Coteja brevemente os robôs asimovianos com a criatura de Frankenstein.  Em seguida, comenta com spoilers o conto de Asimov “Sonhos de Robô”, publicado na coletânea homônima e se refere a Susan Calvin como “uma robopsicóloga sisuda”.  Ao questionar a plateia se era justo destruir um robô que ousasse sonhar com a própria liberdade, como Elvex o faz nesse conto, Piassi me fez concluir que o mais injusto mesmo seria atribuir a uma criatura autoconsciente uma tarefa maçante, tediosa e indigna, que deveria, desde o início, ser delegada a um autômato.  É justamente aí que, tanto do ponto de vista da plausibilidade científica quanto no que tange aos direitos humanos, muitas narrativas do Bom Doutor dão para o torto.  Por que não delegar tarefas rotineiras e insípidas a meros autômatos?  De qualquer forma, com indagações desse tipo, Piassi conduziu a temática crucial de sua fala à questão dos direitos humanos, que era justamente aonde desejava chegar.

Ao citar a noveleta “O Homem Bicentenário” (1976) do Asimov, Piassi também menciona o filme homônimo de 1999, dirigido por Chris Columbus e estrelado por Robin Williams e Sam Neill.[2]




No que se refere ao textos de não ficção de Asimov, Piassi recomendou especialmente No Mundo da Ficção Científica (1981), um livro de ensaios pessoais do autor sobre FC, cuja tradução comete algumas escorregadelas hilárias.  Em termos de divulgação científica, meus favoritos pessoais ainda são O Universo (1966)[3] e Escolha a Catástrofe (1979)[4].

Enfim, Piassi concluiu com chave de ouro nesta época de eleições presidenciais norte-americanas, comparando os imperialismos democrata e republicano.  O primeiro seria exemplificado pelo universo ficcional de Jornada nas Estrelas e o último pela animação da Disney, Rei Leão.

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Entre a fala de Piassi e a de Lúcia La Rocque, cumpre mencionar, mesmo que en passant, os amigos e conhecidos presentes na plateia conectada que logrei identificar pelo canto do olho lá no chat do evento: os escritores de literatura fantástica Alexey Dodsworth e Ana Lúcia Merege.  O astrobiólogo Osame Kinouchi.  Os professores Alexander Meireles da Silva, do Fantasticursos e Naelton Araújo, do Planetário da Gávea.  A prata da casa da FIOCRUZ: Adílson Júnior, Anunciata Sawada, Sheila Assis e Telma Temoteo.  Meus correligionários do clube de leitura Vórtice Rio, Juliana Berlim e Ricardo França.

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Após a apresentação de seu currículo, Lúcia La Rocque abre a fala “Um Breve Passeio por Distopias de uma Terra em Transe” agradecendo Anunciata pela preparação de seu PowerPoint e nos brindando com a bela citação de Freeman Dyson, que tomo a liberdade de colocar em epígrafe nesta crônica.

Em seguida, a fada madrinha da FC na academia abordou as pandemias em geral e a Covid-19 em particular como distopias.  Distopias cum pandemias é um tópico que, do ponto de vista da análise histórica da ficção científica, não faria sentido se não citasse o papel de precursor do romance O Último Homem (1826)[5] de Mary Shelley na temática da pandemia que extingue a humanidade, uma análise que Lúcia estabelece com lucidez, brilhantismo e simplicidade.  Daí, rende-se ao ensejo irresistível de traçar um paralelo para lá de pertinente entre as duas obras de Shelley na literatura fantástica: Frankenstein e O Último Homem.




Após mencionar as narrativas distópicas expressas nos romances Admirável Mundo Novo (1932) de Aldous Huxley; 1984 (1949) de George Orwell e O Conto da Aia (1985) de Margaret Atwood, Lúcia compara outro romance distópico dessa autora, MaddAddam (2013)[6], com O Último Homem, frisando que, ao contrário desse último, MaddAddam constitui um bom exemplo da temática do Complexo de Frankenstein na literatura fantástica.



Após uma pincelada breve, mas pertinente, nos filmes de ficção científica que abordam a temática da pandemia, Lúcia encerra sua fala categoricamente com o poema “Congresso Internacional do Medo”, de Carlos Drummond de Andrade.

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Findas as palestras, a mediadora lança aos participantes as perguntas e comentários da plateia digital, colocadas no chat ao longo das apresentações.

Ante à questão se estaríamos vivendo uma distopia pandêmica, Lúcia responde que a classificação de um texto como distopia ou utopia depende um pouco das naturezas dos personagens e dos leitores.

Aproveitando o gancho da citação de Rei Leão por Piassi, Anunciata indaga se o clássico da Disney não seria, em verdade, um plágio do mangá e anime japonês Kimba.[7]  Pelo que se comentou, fiquei com a impressão nítida de que é plágio, sim.

Quando alguém da plateia indaga sobre a suposta misoginia presente na obra ficcional de Asimov, Piassi sagazmente escapa pela tangente.  Imagino se integrantes da plateia não estariam confundindo o comportamento do Bom Doutor (velhas histórias de assédios e traseiros femininos beliscados em elevadores)[8] com a ausência de relevância das personagens femininas na obra de Asimov.  Sobretudo, nas narrativas escritas antes de 1970.

A partir do questionamento de uma integrante da plateia, Piassi compara as Três Leis da Robótica com a Declaração dos Direitos Humanos e discute brevemente o que é humano.  Aliás, em suas três instâncias, duas literárias e uma cinematográfica, O Homem Bicentenário se esforça um bocado para esboçar uma resposta provisória a essa exata questão.

 



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Dois grandes especialistas no ensino das ciências com o emprego da ficção científica nos brindaram esta noite com duas palestras excelentes, daquelas que deixam a plateia triste quando o espetáculo acaba, com o espírito repleto com um gostinho de quero-mais.

Enfim, concluída esta quarta e penúltima sessão do II Encontro de Ficção Científica e Ensino de Ciências, já começa a bater uma ponta de saudades.  Espero que haja um III Encontro em 2021.

Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 24 de setembro de 2020 (quinta-feira).

 


Participantes:

Adílson Júnior.

Alexander Meireles da Silva (Fantasticursos).

Alexey Dodsworth.

Ana Lúcia Merege.

Anunciata Sawada (coordenadora e moderadora).

Gerson Lodi-Ribeiro.

Juliana Berlim.

Lúcia de La Rocque (apresentadora).

Luís Paulo Piassi (apresentador).

Naelton Araújo (Planetário da Gávea).

Osami Kinouchi.

Ricardo França.

Sheila Assis.

Telma Temoteo.

 



[1].  Segundo Piassi, uma homenagem a Fred Mercury que, como ele destacou, também morreu de AIDS.

[2].  Esse filme se baseou não só na noveleta como no romance O Homem Positrônico (1992), escrito por Robert Silverberg e Isaac Asimov.  Em verdade, com a anuência de Asimov, Silverberg reescreveu a noveleta original, expandindo-a sob a forma de romance.  A maior diferença entre esses dois textos é a grande ênfase na psicologia interna do protagonista Andrew Martin, sobretudo em sua mudança gradativa, da mentalidade robótica padronizada até o humano artificial criativo e genial.  Em suma, o romance narra essencialmente a mesma história que a noveleta, só que mais bem contada.


[3].  História da Astronomia em um único volume.  Abrangente e completo.  Abordagem histórica impecável, desde a Antiguidade Clássica até 1966 EC.  Uma obra que me influenciou bastante a almejar cursar Astronomia.

[4].  Exposição de todas as catástrofes, de todos os tipos possíveis, que se podem abater sobre a humanidade.  O livro se divide em cinco partes, conforme o autor classifica as catástrofes em graus de um a cinco, das mais gerais, inevitáveis e remotas até as mais específicas, em princípio evitáveis e mais próximas: 1) primeiro grau - destruição do Universo; 2) segundo  grau - destruição do Sistema Solar; 3) terceiro grau - destruição da Terra; 4) quarto grau - extinção da humanidade; e 5) quinto grau - desaparecimento da civilização atual.

[5].  Nanorresenha extraída do meu bunker de dados: O Último Homem (Landmark, 2010) – Romance precursor das temáticas da pandemia que aniquila a humanidade e do último humano sobre a Terra.  Enredo ambientado numa Europa do fim do século XXI (sobretudo na Grã-Bretanha) incrivelmente semelhante à Europa da terceira década do século XIX, época em que o romance foi escrito, exceto pelos fatos de haver transporte aéreo (através de dirigíveis) e de a Grã-Bretanha ter se transformado numa república.  É possível que essa seja uma terceira temática precursora, ao menos no âmbito da literatura fantástica.  Em seu todo, esta narrativa romântica é pesada demais, maçante demais e, demasiadamente longa para o tamanho do enredo que a autora se propõe contar.  O que talvez explique porque não obteve tanto êxito literário e comercial quanto FRANKENSTEIN.  O romance se divide em três tomos, grosso modo, de mesmo tamanho.  A temática da pandemia só é introduzida ao fim do segundo tomo.  O primeiro tomo trata, em essência, da juventude e da educação do protagonista, bem como das experiências românticas dele e de seus amigos e companheiras.  O segundo tomo trata das aventuras militares na Grécia do cunhado do protagonista, observadas do ponto de vista deste último.  Enfim, o terceiro tomo trata da chegada da peste à Europa e suas consequências fatais: a extinção da civilização humana (Edição bilíngue português-inglês).

[6].  MaddAddam também é o nome da trilogia homônima dessa autora canadense, cujos romances são: Oryx e Crake (2003); Ano do Dilúvio (2009); e MaddAddam (2013).  Há edições em português para os dois primeiros romances.

[7].  Como não fazia a menor ideia o que se tratava, recorri à Wikipédia para poupar esse trabalho aos poucos leitores tão ignorantes quanto este que lhes escreve: “Jungle Taitei, mais conhecido no Ocidente como Kimba, o Leão Branco é um mangá de Osamu Tezuka, mais tarde transformado em anime, que trata das relações entre o homem e a natureza através da história do leão branco Kimba enquanto ele tenta governar a selva”.

[8].  Não me estenderei demasiado nessa polêmica candente.  Aos interessados, sugiro a leitura dos artigos abaixo:

·          Jay Gabler: “What to Make of Isaac Asimov, Sci-Fi Giant and Dirty Old Man?”: https://lithub.com/what-to-make-of-isaac-asimov-sci-fi-giant-and-dirty-old-man/

·          Jim C. Hines: “Don’t Look Away: Fighting Sexual Harassment in the Scifi/Fantasy Community”: https://io9.gizmodo.com/dont-look-away-fighting-sexual-harassment-in-the-scifi-1785704207

·          David Futrelle: “Isaac Asimov: Prolific author, even more prolific sexual assaulter”: https://wehuntedthemammoth.com/2020/01/08/isaac-asimov-prolific-author-even-more-prolific-sexual-assaulter/

·          [Skeptics]: “Was Isaac Asimov notorious for groping women?”: https://skeptics.stackexchange.com/questions/35028/was-isaac-asimov-notorious-for-groping-women

·           [Wikipedia]: Isaac Asimov: https://en.wikipedia.org/wiki/Isaac_Asimov#Behavior_towards_women

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