Guerra do Velho no Vórtice Fantástico
201606252359P7 — 20.442 D.V.
“— Ouvi dizer
que eles são criados a partir dos mortos. — Cained falou. — O padrão genético de
humanos mortos é fundido ao material genético de outras espécies, em busca de
resultados. Alguns desses resultados nem sequer parecem humanos,
como vocês se reconhecem como tais.
Nascem como adultos, com destreza e habilidades, mas sem memórias. E não é só sem memórias. Sem identidade. Sem moralidade. Sem restrições. Sem... — Ele parou, como se buscando a
palavra correta. — Sem humanidade. —
Ele a encontrou, finalmente. — Como vocês diriam. Crianças-soldado em corpos de adultos. Abominações.
Monstros. Ferramentas que a sua
União Colonial usa nas missões em que ela não deseja ou não pode empregar
soldados que possuem experiência de vida e senso moral. Ou que possam temer por suas almas, neste
mundo ou no próximo.”
(John Scalzi,
The Ghost Brigades)
Compareci neste fim de tarde de inverno para mais uma sessão mensal do
núcleo carioca do Vórtice Fantástico. Como
desta vez nos reunimos duas horas mais tarde do que nosso horário habitual das
15h00, optamos por uma cafeteria do espaço Itaú Multiplex, na Praia de
Botafogo, em detrimento de nosso sítio tradicional, na Biblioteca Parque
Estadual, em frente ao Campo de Santana, no centro do Rio.
Talvez pelo horário diverso, talvez pelo local alternativo, a maioria
dos participantes de certames anteriores não pôde comparecer desta vez. Presentes apenas o casal Renata Aquino &
Eliseu Ferreira; Stella Rosemberg; Erick Massoto; Daniel Faleiro e eu. A namorada de Daniel, Carol Montenegro
apareceu já ao fim da parte oficial do evento e participou bastante do
bate-papo animado que se seguiu, mas não da análise do romance Guerra do Velho (Aleph, 2016), de John
Scalzi.
A narrativa desse romance é apresentada sob o ponto de vista de John
Perry, um cidadão norte-americano sênior e viúvo de setenta e cinco anos num
futuro mais ou menos distante em que a humanidade domina técnicas de navegação
superlumial e já coloniza outros sistemas estelares há pelo menos dois séculos. Ao cruzar essa idade limite, ele decide
abdicar da cidadania terrestre, para se tornar um recruta das Forças
Coloniais. Para tanto, como parte da
barganha, Perry recebe um corpo jovem repleto de aperfeiçoamentos genéticos e
um implante neural autoconsciente, para ajudá-lo a combater guerreiros de
potências alienígenas hostis que ameaçam a diáspora humana periferia galáctica
afora.
Scalzi estabelece um diálogo explícito profícuo com os romances Tropas Estelares de Robert A. Heinlein; The Forever War de Joe Haldeman; e O Jogo do Exterminador de Orson Scott
Card, além de um outro diálogo, mais sutil, com a noveleta “The Civilization
Game” de Clifford D. Simak.
* *
*
Em prol da pontualidade, dada a rarefação habitual dos ônibus da linha
de conexão com o metrô nos fins de semana, fui obrigado a pegar um táxi para
chegar ao Itaú Multiplex a tempo. Fui o
segundo a chegar, após Stella, que já se encontrava sentada à mesa de uma
cafeteria em frente à livraria Blooks, na galeria do complexo e se deliciava
com um drink quente e não alcoólico à base de café e chocolate, o Amor
Perfeito, bebida tão atraente ao olfato e à visão, que resolvi pedir outro
igual para mim antes mesmo de saber do que se tratava. Não me arrependi.
Erick chegou pouco depois.
Conversa vai, conversa vem, descobri que Stella e Erick já se conheciam
desde a adolescência e que foram apresentados um à outra por uma professora de
inglês que possuíam em comum, embora nunca tenham frequentado as mesmas salas
de aula. A propósito, hoje em dia Stella
é professora da Cultura Inglesa.
Renata chegou um pouco mais tarde e, em seguida, Daniel apareceu no
pedaço.
Quitei meu Amor Perfeito e pedi uma taça do vinho tinto da casa antes
de começarmos a destrinchar o romance do Scalzi. Excepcionalmente, lembrei-me de anunciar
minha participação numa das mesas-redondas do 1º Congresso da Associação
Brasileira de Famílias Homoafetivas na próxima sexta-feira e também o
lançamento para breve de meu livro de não ficção Vita Vinum Est! — História do Vinho no Mundo Romano.
* *
*
Começamos nossa análise informal do romance assim que Daniel se sentou
conosco à mesa da cafeteria. Não
obstante o número relativamente reduzido de debatedores, Guerra do Velho constituiu de longe a leitura que mais discussões
suscitou — e discussões mais interessantes — de todas as sessões do Vórtice
Fantástico de que participei desde julho do ano passado.
De minha parte, embora tenha adorado a narrativa de John Scalzi, tanto
por sua verve e originalidade quanto pela temática de guerra estelar contra
civilizações alienígenas, uma de minhas favoritas no domínio da ficção
científica, ao concluir a leitura fiquei com uma série de dúvidas e impressões que
cumpre registrar nesta crônica.
Alerta aos navegantes: os questionamentos a seguir estão coalhados de spoilers. Se você ainda não leu o Guerra do Velho e não gosta de saber do fim da
história antes de chegar à última página, sugiro que salte direto para o
próximo trio de asteriscos.
Isto posto, a primeira questão é a seguinte: se a humanidade já possui
tecnologias de registro de personalidade e de produção de clones, por que diabos
os soldados não gozam de imortalidade?
Seria absurdamente fácil ressuscitá-los a partir de seus últimos
registros, evitando que todas as experiências de combate que eles acumularam se
perdessem à toa. Foi exatamente este o
passo lógico que decidimos implementar no universo ficcional Taikodom, cujas especificações (a famosa
“bíblia”) foram estabelecidas um ano antes de John Scalzi publicar o primeiro
romance da sequência Guerra do Velho.
Outra implicância relevante no âmbito da ficção científica hard: por
que tanta ênfase em colonizar mundos bióticos?
Atavismo da Golden Age? Qualquer civilização capaz de empreender
viagens para outros sistemas estelares a velocidades acima da luz também deve ser
capaz de construir habitats espaciais gigantescos com um pé nas costas. Cada um desses habitats poderia abrigar
centenas de milhares ou até mesmo milhões de habitantes. Em seu conjunto, os habitats espaciais de
determinado sistema estelar abrigariam bilhões de habitantes. Afinal, uma vez conquistado o espaço, por que
uma civilização madura desejaria regressar às velhas, sujas e inseguras biosferas
planetárias?
No quesito motivação para engajar em conflitos interestelares contra
espécies alienígenas, a própria noção de se travar guerra em âmbito estelar por
recursos naturais não faz o mínimo sentido.
Afinal, civilizações avançadas a ponto de viajar entre as estrelas em
velocidades superlumiais decerto dominariam técnicas de sintetizar qualquer
recurso a partir de elementos simples, existentes em abundância universo afora.
Há ainda a questão da postura militarista, tipicamente
norte-americana. Ao retratar a humanidade
em conflitos bélicos mais ou menos simultâneos com diversas civilizações
alienígenas avançadas, pelo menos no que concerne a esse primeiro romance,
Scalzi coloca os humanos como autênticos valentões da periferia galáctica.
No que diz respeito aos diálogos e pontes que o autor erige em direção
a narrativas com temáticas semelhantes escritas por seus (nossos) antecessores,
há os paralelismos mais explícitos e os mais sutis.
O diálogo mais óbvio, beirando a homenagem, é aquele estabelecido com o
romance clássico de Robert A. Heinlein, Starship
Troopers (1959), publicado entre nós como Tropas Estelares. Tanto
Heinlein quanto Scalzi definem a guerra contra potências alienígenas hostis
como uma questão de sobrevivência para nossa espécie e, num nível ainda mais
profundo, como uma questão de “nós contra eles”. Heinlein deixa claro que o inimigo atacou
primeiro. Neste sentido, portanto, a
humanidade estaria apenas reagindo aos ataques sofridos. Já Scalzi, ao menos no romance que introduz
seu universo ficcional, mostra os humanos como agressores contumazes.
The Forever War (1974) de Joe
Haldeman é a antítese de Tropas Estelares
e, portanto, de Guerra do Velho. Aqui a humanidade se defronta com um único
inimigo, os Tauranos. Os soldados são
selecionados entre os jovens mais capazes e inteligentes. Em virtude dos efeitos relativísticos, do
ponto de vista daqueles que permanecem no Sistema Solar, os militares humanos
só regressam à Terra em seus períodos de licença uma vez a cada geração,
fenômeno que os torna vítimas de choques culturais tão ou mais impressionantes
do que as dificuldades que precisam enfrentar nos campos de batalha.
O Jogo do Exterminador (1985)[1]
de Orson Scott Card dialoga com o clássico de Heinlein, mas inova ao propor uma
guerra contra alienígenas insetoides hostis comandada por crianças geniais a
partir de ambientes simulados.
Guerra do Velho interage com
os três romances acima, mais intensamente com Tropas Estelares e O Jogo do
Exterminador, ao propor conflitos estelares travados por cidadãos idosos
transformados em supersoldados e também por crianças em corpos de adultos
transformados em super-supersoldados (a famosa Brigada Fantasma), abordagem que
suscita uma questão ética apavorante, de forma bem mais contundente e plausível
do que a mostrada por Card em seu romance.
Cumpre mencionar ainda que a estratégia sábia exercitada pela
humanidade no universo ficcional de Guerra
do Velho, de manter as humanidades terrestre e solariana intocadas e o
máximo possível afastadas dos conflitos estelares que grassam na periferia
galáctica, como uma espécie de reserva de segurança para a espécie, já havia
sido adotada na noveleta “The Civilization Game” (1958) de Clifford D. Simak.
* *
*
Eliseu chegou bem em meio ao debate sobre o Guerra do Velho e as comparações com os demais romances citados
acima. Mas ele e Renata não ficaram
muito tempo, pois saíram para assistir uma peça de teatro. Com cerca de 60% do romance lido, Renata se
confessou “não muito empolgada” pelo texto de Scalzi, cujos personagens ela
julgou pouco profundos.
Já no início do debate, Daniel nos havia indagado se nutríamos alguma
restrição contra narrativas em estilo supostamente cinematográfico, como é o
caso do exercitado em Guerra do Velho. Todos os presentes afirmaram não ver grandes
problemas nesta opção estratégica autoral.
Após a partida do casal, Carol chegou ao Itaú Multiplex e sentou
conosco. A partir daí, o papo passou da
análise do romance em si para — sobretudo, mas não só — literatura e cinema
fantásticos em geral. Conversamos um
bocado sobre a sexta temporada da série Game
of Thrones, baseada no U.F. Canção de
Gelo e Fogo, do George R.R. Martin, cujo último episódio será exibido
amanhã à noite. Falei do spoiler sobre a
morte de Tommen Baratheon, vamos ver se rola.
Daniel me contou sobre um projeto de universo ficcional que ele anda
lucubrando, envolvendo híbridos humanos gengenheirados e outros bichos
mais. Ainda neste tópico, ele me
incentivou a comparecer à exposição Comciência,
da Patricia Piccinini, atualmente em seus últimos dias no Centro Cultural do
Banco do Brasil, no centro da cidade. Também
falamos sobre pais & filhos, vida em família, práticas alimentares e
preferências nutricionais, com ênfase particular às carnes bem temperadas, aos
caldos verdes e aos cremes de batata-baroa.
Como o papo estava dos melhores, só saímos da galeria por volta das
20h00. Uma das melhores reuniões até
hoje.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 25 de junho de 2016 (sábado).
Participantes:
Carol
Montenegro
Daniel Faleiro
Eliseu
Ferreira
Erick
Massoto
Gerson Lodi-Ribeiro
Renata Aquino
Stella Rosemberg
[1]. Esse romance é a expansão da
noveleta homônima, “O Jogo do Exterminador” (1977), publicada em português na
edição nº 14 da versão brasileira da revista Asimov’s.