segunda-feira, 27 de junho de 2016

Guerra do Velho no Vórtice Fantástico

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“— Ouvi dizer que eles são criados a partir dos mortos. — Cained falou. — O padrão genético de humanos mortos é fundido ao material genético de outras espécies, em busca de resultados.  Alguns desses resultados nem sequer parecem humanos, como vocês se reconhecem como tais.  Nascem como adultos, com destreza e habilidades, mas sem memórias.  E não é só sem memórias.  Sem identidade.  Sem moralidade.  Sem restrições.  Sem... — Ele parou, como se buscando a palavra correta. — Sem humanidade. — Ele a encontrou, finalmente. — Como vocês diriam.  Crianças-soldado em corpos de adultos.  Abominações.  Monstros.  Ferramentas que a sua União Colonial usa nas missões em que ela não deseja ou não pode empregar soldados que possuem experiência de vida e senso moral.  Ou que possam temer por suas almas, neste mundo ou no próximo.”
(John Scalzi, The Ghost Brigades)

Compareci neste fim de tarde de inverno para mais uma sessão mensal do núcleo carioca do Vórtice Fantástico.  Como desta vez nos reunimos duas horas mais tarde do que nosso horário habitual das 15h00, optamos por uma cafeteria do espaço Itaú Multiplex, na Praia de Botafogo, em detrimento de nosso sítio tradicional, na Biblioteca Parque Estadual, em frente ao Campo de Santana, no centro do Rio.
Talvez pelo horário diverso, talvez pelo local alternativo, a maioria dos participantes de certames anteriores não pôde comparecer desta vez.  Presentes apenas o casal Renata Aquino & Eliseu Ferreira; Stella Rosemberg; Erick Massoto; Daniel Faleiro e eu.  A namorada de Daniel, Carol Montenegro apareceu já ao fim da parte oficial do evento e participou bastante do bate-papo animado que se seguiu, mas não da análise do romance Guerra do Velho (Aleph, 2016), de John Scalzi.
A narrativa desse romance é apresentada sob o ponto de vista de John Perry, um cidadão norte-americano sênior e viúvo de setenta e cinco anos num futuro mais ou menos distante em que a humanidade domina técnicas de navegação superlumial e já coloniza outros sistemas estelares há pelo menos dois séculos.  Ao cruzar essa idade limite, ele decide abdicar da cidadania terrestre, para se tornar um recruta das Forças Coloniais.  Para tanto, como parte da barganha, Perry recebe um corpo jovem repleto de aperfeiçoamentos genéticos e um implante neural autoconsciente, para ajudá-lo a combater guerreiros de potências alienígenas hostis que ameaçam a diáspora humana periferia galáctica afora.
Scalzi estabelece um diálogo explícito profícuo com os romances Tropas Estelares de Robert A. Heinlein; The Forever War de Joe Haldeman; e O Jogo do Exterminador de Orson Scott Card, além de um outro diálogo, mais sutil, com a noveleta “The Civilization Game” de Clifford D. Simak.



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Em prol da pontualidade, dada a rarefação habitual dos ônibus da linha de conexão com o metrô nos fins de semana, fui obrigado a pegar um táxi para chegar ao Itaú Multiplex a tempo.  Fui o segundo a chegar, após Stella, que já se encontrava sentada à mesa de uma cafeteria em frente à livraria Blooks, na galeria do complexo e se deliciava com um drink quente e não alcoólico à base de café e chocolate, o Amor Perfeito, bebida tão atraente ao olfato e à visão, que resolvi pedir outro igual para mim antes mesmo de saber do que se tratava.  Não me arrependi.
Erick chegou pouco depois.  Conversa vai, conversa vem, descobri que Stella e Erick já se conheciam desde a adolescência e que foram apresentados um à outra por uma professora de inglês que possuíam em comum, embora nunca tenham frequentado as mesmas salas de aula.  A propósito, hoje em dia Stella é professora da Cultura Inglesa.
Renata chegou um pouco mais tarde e, em seguida, Daniel apareceu no pedaço.
Quitei meu Amor Perfeito e pedi uma taça do vinho tinto da casa antes de começarmos a destrinchar o romance do Scalzi.  Excepcionalmente, lembrei-me de anunciar minha participação numa das mesas-redondas do 1º Congresso da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas na próxima sexta-feira e também o lançamento para breve de meu livro de não ficção Vita Vinum Est! — História do Vinho no Mundo Romano.
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Começamos nossa análise informal do romance assim que Daniel se sentou conosco à mesa da cafeteria.  Não obstante o número relativamente reduzido de debatedores, Guerra do Velho constituiu de longe a leitura que mais discussões suscitou — e discussões mais interessantes — de todas as sessões do Vórtice Fantástico de que participei desde julho do ano passado.
De minha parte, embora tenha adorado a narrativa de John Scalzi, tanto por sua verve e originalidade quanto pela temática de guerra estelar contra civilizações alienígenas, uma de minhas favoritas no domínio da ficção científica, ao concluir a leitura fiquei com uma série de dúvidas e impressões que cumpre registrar nesta crônica.

Alerta aos navegantes: os questionamentos a seguir estão coalhados de spoilers.  Se você ainda não leu o Guerra do Velho e não gosta de saber do fim da história antes de chegar à última página, sugiro que salte direto para o próximo trio de asteriscos.

Isto posto, a primeira questão é a seguinte: se a humanidade já possui tecnologias de registro de personalidade e de produção de clones, por que diabos os soldados não gozam de imortalidade?  Seria absurdamente fácil ressuscitá-los a partir de seus últimos registros, evitando que todas as experiências de combate que eles acumularam se perdessem à toa.  Foi exatamente este o passo lógico que decidimos implementar no universo ficcional Taikodom, cujas especificações (a famosa “bíblia”) foram estabelecidas um ano antes de John Scalzi publicar o primeiro romance da sequência Guerra do Velho.
Outra implicância relevante no âmbito da ficção científica hard: por que tanta ênfase em colonizar mundos bióticos?  Atavismo da Golden Age?  Qualquer civilização capaz de empreender viagens para outros sistemas estelares a velocidades acima da luz também deve ser capaz de construir habitats espaciais gigantescos com um pé nas costas.  Cada um desses habitats poderia abrigar centenas de milhares ou até mesmo milhões de habitantes.  Em seu conjunto, os habitats espaciais de determinado sistema estelar abrigariam bilhões de habitantes.  Afinal, uma vez conquistado o espaço, por que uma civilização madura desejaria regressar às velhas, sujas e inseguras biosferas planetárias?
No quesito motivação para engajar em conflitos interestelares contra espécies alienígenas, a própria noção de se travar guerra em âmbito estelar por recursos naturais não faz o mínimo sentido.  Afinal, civilizações avançadas a ponto de viajar entre as estrelas em velocidades superlumiais decerto dominariam técnicas de sintetizar qualquer recurso a partir de elementos simples, existentes em abundância universo afora.
Há ainda a questão da postura militarista, tipicamente norte-americana.  Ao retratar a humanidade em conflitos bélicos mais ou menos simultâneos com diversas civilizações alienígenas avançadas, pelo menos no que concerne a esse primeiro romance, Scalzi coloca os humanos como autênticos valentões da periferia galáctica.
No que diz respeito aos diálogos e pontes que o autor erige em direção a narrativas com temáticas semelhantes escritas por seus (nossos) antecessores, há os paralelismos mais explícitos e os mais sutis.
O diálogo mais óbvio, beirando a homenagem, é aquele estabelecido com o romance clássico de Robert A. Heinlein, Starship Troopers (1959), publicado entre nós como Tropas Estelares.  Tanto Heinlein quanto Scalzi definem a guerra contra potências alienígenas hostis como uma questão de sobrevivência para nossa espécie e, num nível ainda mais profundo, como uma questão de “nós contra eles”.  Heinlein deixa claro que o inimigo atacou primeiro.  Neste sentido, portanto, a humanidade estaria apenas reagindo aos ataques sofridos.  Já Scalzi, ao menos no romance que introduz seu universo ficcional, mostra os humanos como agressores contumazes.
The Forever War (1974) de Joe Haldeman é a antítese de Tropas Estelares e, portanto, de Guerra do Velho.  Aqui a humanidade se defronta com um único inimigo, os Tauranos.  Os soldados são selecionados entre os jovens mais capazes e inteligentes.  Em virtude dos efeitos relativísticos, do ponto de vista daqueles que permanecem no Sistema Solar, os militares humanos só regressam à Terra em seus períodos de licença uma vez a cada geração, fenômeno que os torna vítimas de choques culturais tão ou mais impressionantes do que as dificuldades que precisam enfrentar nos campos de batalha.
O Jogo do Exterminador (1985)[1] de Orson Scott Card dialoga com o clássico de Heinlein, mas inova ao propor uma guerra contra alienígenas insetoides hostis comandada por crianças geniais a partir de ambientes simulados.
Guerra do Velho interage com os três romances acima, mais intensamente com Tropas Estelares e O Jogo do Exterminador, ao propor conflitos estelares travados por cidadãos idosos transformados em supersoldados e também por crianças em corpos de adultos transformados em super-supersoldados (a famosa Brigada Fantasma), abordagem que suscita uma questão ética apavorante, de forma bem mais contundente e plausível do que a mostrada por Card em seu romance.
Cumpre mencionar ainda que a estratégia sábia exercitada pela humanidade no universo ficcional de Guerra do Velho, de manter as humanidades terrestre e solariana intocadas e o máximo possível afastadas dos conflitos estelares que grassam na periferia galáctica, como uma espécie de reserva de segurança para a espécie, já havia sido adotada na noveleta “The Civilization Game” (1958) de Clifford D. Simak.
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Eliseu chegou bem em meio ao debate sobre o Guerra do Velho e as comparações com os demais romances citados acima.  Mas ele e Renata não ficaram muito tempo, pois saíram para assistir uma peça de teatro.  Com cerca de 60% do romance lido, Renata se confessou “não muito empolgada” pelo texto de Scalzi, cujos personagens ela julgou pouco profundos.
Já no início do debate, Daniel nos havia indagado se nutríamos alguma restrição contra narrativas em estilo supostamente cinematográfico, como é o caso do exercitado em Guerra do Velho.  Todos os presentes afirmaram não ver grandes problemas nesta opção estratégica autoral.
Após a partida do casal, Carol chegou ao Itaú Multiplex e sentou conosco.  A partir daí, o papo passou da análise do romance em si para — sobretudo, mas não só — literatura e cinema fantásticos em geral.  Conversamos um bocado sobre a sexta temporada da série Game of Thrones, baseada no U.F. Canção de Gelo e Fogo, do George R.R. Martin, cujo último episódio será exibido amanhã à noite.  Falei do spoiler sobre a morte de Tommen Baratheon, vamos ver se rola.  Daniel me contou sobre um projeto de universo ficcional que ele anda lucubrando, envolvendo híbridos humanos gengenheirados e outros bichos mais.  Ainda neste tópico, ele me incentivou a comparecer à exposição Comciência, da Patricia Piccinini, atualmente em seus últimos dias no Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro da cidade.  Também falamos sobre pais & filhos, vida em família, práticas alimentares e preferências nutricionais, com ênfase particular às carnes bem temperadas, aos caldos verdes e aos cremes de batata-baroa.
Como o papo estava dos melhores, só saímos da galeria por volta das 20h00.  Uma das melhores reuniões até hoje.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 25 de junho de 2016 (sábado).





Participantes:
Carol Montenegro
Daniel Faleiro
Eliseu Ferreira
Erick Massoto
Gerson Lodi-Ribeiro
Renata Aquino
Stella Rosemberg




[1].  Esse romance é a expansão da noveleta homônima, “O Jogo do Exterminador” (1977), publicada em português na edição nº 14 da versão brasileira da revista Asimov’s.

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