Live
Neandertais na Ficção Científica
Canal
Filosofia da Astronáutica e Ficção Científica
202308182359P6 – 24.051 D.V.
“Alguém conhece o livro Homo tempus – o que sobrou
do futuro?” (Fabrício Jacob).
“Chat GPT tem seus momentos Rolando Lero.” (Hidemberg
Frota).
Após a sessão
do fim de julho nesse mesmo canal, versando sobre a Questão de Fermi e a solução
de segunda ordem Floresta Escura, o anfitrião Edgar Smaniotto me convidou para
participar do bate-papo “Neandertais na Ficção Científica”, mais uma vez em
companhia dos amigos Paulo Elache e Carlos Relva.
Em preparação
para o evento, reli à véspera meu ensaio “Neandertais na Literatura Fantástica”[1],
recém-publicado na coletânea Primeiros Humanos (Amazon KDP, 2023)[2].
Conectamos através
do StreamYard às 20h55, cinco minutos antes do horário marcado para o início da
sessão ecoada no canal Filosofia da Astronáutica
e Ficção Científica, que Edgar mantém no YouTube. Como das vezes
anteriores, o eco no YouTube entrou no ar dez ou quinze segundos depois do que falávamos
na sala virtual de bate-papo.
A sessão memorável
se estendeu por três horas e vinte e cinco minutos e transcorreu naquele clima
de bate-papo informal ao qual os inscritos no canal já estão acostumamos.
O evento se
encontra disponível no YouTube, acessível através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=YyU-i1z7MjQ
Embora não tenha
superado a marca de quinze espectadores em momento alguns das quase três horas e
meia de transmissão, o evento contou com uma plateia participante e ativa ao longo
de todo o certame. A versão disponível da live esteve com sessenta e cinco
visualizações no momento em que concluí esta crônica.
Entre os
amigos participantes, compareceram Hidemberg Alves da Frota; e Ricardo Mendonça,
além da minha cara-metade, Cláudia Quevedo Lodi.
* * *
Após os anúncios
& avisos iniciais de praxe, Edgar abriu os trabalhos me apresentando como
um especialista em neandertais na FC por conta dos ensaios que publiquei no Somnium
e no Megalon, informando também sobre a versão atualizada, incluída na Primeiros
Humanos. A seguir, em tom de brincadeira, apresentou Paulo Elache como
engenheiro especializado em tecnologia neandertal. Na mesma vibe, ao ser
apresentado, Carlos Relva confessou se sentir como um neandertal entre Cro
Magnons.
Logo no início
da live, lá da plateia, Fabricio Jacob indagou se alguém conhecia seu livro
Homo tempus: o que sobrou do futuro. Segundo ele, um romance distópico em
que um jovem viaja ao futuro e é capturado por neandertais. Só repararíamos na
pergunta algum tempo depois.
Daí, Edgar nos
pediu que contássemos sobre nossos primeiros contatos com os neandertais nas narrativas
fantásticas. Ele próprio falou que sua primeira experiência foi com “A História
de Java”, publicada numa edição brasileira da HQ italiana Martin Mystère. Lembrei en passant
dos homens-macacos que aparecem no romance O Mundo Perdido (1912) de
Arthur Conan Doyle, embora não tenha certeza se eram ou não neandertais. Então,
falei que o neandertal que mais me impressionou como “primeiro contato”, foi o Alaric,
mais conhecido como “Knurly”, dublê de sábio e guerreiro, para além de mentor do
jovem protagonista do romance Onde Mora o Mal (1982), do Clifford D.
Simak, que abordo com detalhes em “Neandertais na Literatura Fantástica”. Nessa
ocasião inicial, aproveitei para falar brevemente da antologia Neanderthals
(New American Library, 1987), organizada por Robert Silverberg, Martin H.
Greenberg & Charles G. Waugh, que reúne boa parte da ficção curta clássica sobre
o Homo sapiens neandertalensis.[3],
ainda aproveitei para citar brevemente as novelas Down to the Bottomlands
(1993) de Harry Turtledove e A Vingança da Ampulheta (2000) de Fábio Fernandes
e a trilogia The Neanderthal Parallax
(Tor Books, 2002 e 2003) de Robert J. Sawyer. Lá do chat do YouTube, Hidemberg
comentou que os neandertais de Sawyer possuiriam uma sexualidade fluida.
Falamos um
pouco das diferenças cerebrais hipotéticas entre neandertais e humanos
anatomicamente modernos, intuídas a partir das diferenças entre os crânios de
neandertais e humanos fósseis.
Voltando à questão
inicial do Edgar, Paulo revelou que seu primeiro contato com os neandertais
ficcionais foi com a tirinha do Brucutu. Em seguida, nosso anfitrião falou
sobre a frequência com que os neandertais aparecem na literatura, fantástica mas
não só. Daí, divagamos para as causas prováveis para o desaparecimento dos neandertais,
passando do genocídio praticado pelo Homo sapiens sapiens à assimilação genética
e ao consumo excessivo de carne vermelha pelos neandertais.
De divagação em
divagação, mergulhamos nos supostos atributos sexuais dos neandertais e isso me
deu oportunidade de comentar a novela sensacional do Philip José Farmer, The
Alley Man (1959), presente na antologia Neanderthals.
* *
*
Eram decorridos
cinquenta minutos da sessão, quando Fabrício Jacob mencionou lá no chat do
YouTube que alguns testes genéticos atuais indicam o percentual de genes neandertais
em nosso genoma e afirmou que ele teria 2,4% de DNA neandertal. Isso nos levou
a finalmente perceber a questão inicial do autor, supracitada. Infelizmente,
nenhum dos quatro e, ao que suponho, tampouco nenhum dos presentes em nossa
plateia virtual, já ouvira falar do romance Homo tempus, que se encontra
à venda na Amazon brasileira em edições impressa e e-book.
De volta à temática
dos neandertais na literatura, lembramos da coletânea do Brian W. Aldiss, Intangibles
Inc. and Other Stories, publicado no Brasil pela Cultrix com o título
capcioso de O Planeta de Neanderthal (1972), por causa do conto homônimo,
um dos mais curtos do livro.
Pouco mais
tarde, comentamos o romance da Jean M. Auel, Ayla, a Filha das Cavernas
(Record, 1991), cujo título original foi The Clan of the Cave Bear.[4] Falamos também do filme kitsch antigão Iceman
(1984), em que um neandertal é encontrado sob o gelo e revivido por uma equipe
de exploração do Ártico. Esse filme nos fez debater os limites e a pseudociência
das técnicas de criogenia. Dali para especularmos sobre hibernação de seres
humanos foi um pulo.
A partir de
uma pergunta que Dioberto Souza lançou no chat, abordamos um filme que adoro, Guerra
do Fogo (1981), não obstante ser um drama pré-histórico desprovido de elementos
fantásticos. Recordamos que os protagonistas desse filme eram de fato neandertais.
Daí, divagamos
para um vício antigo: as sagas e narrativas da franquia Perry Rhodan. Conquanto recorrente, essa divagação nem é tão
off-topic assim, uma vez que há um personagem neandertal nessa série
longeva. Ao longo do preparo desta crônica, não resisti e acabei entrando no
site da editora SSPG e comprando o nº 1.000 da série: O Terrano.
Só nesse
ponto, aos noventa e três minutos da sessão, Carlos Relva revelou que seu
primeiro contato com as narrativas neandertais se deu através da série pré-histórica
Korg: 70.000 a.C. (1974), cuja única temporada foi exibida na primeira
metade da década de 1970. Sempre julguei o protagonista dessa série parecido
com um tio meu. Mas, enfim, questões familiares à parte, todos os episódios de Korg
estão disponíveis no YouTube (em inglês).
* *
*
Saindo um
pouco da ficção em direção à ciência, lembrei que esse papo de que os neandertais
tomaram pau dos humanos anatomicamente modernos na Europa é algo relativo. Pois,
na primeira expansão do Homo sapiens sapiens para fora da África, cerca de
cem mil anos atrás, nossos antepassados conquistaram a Ásia aos Homo erectus
e ocuparam a Oceania, mas foram rechaçados na Europa. Citei muito de passagem a
tese instigante da predação neandertal sobre os anatomicamente modernos,
defendida por Danny Vendramini em seu livro, Them + Us: How Neanderthal
Predation Created Modern Humans (Kardoorair Press, 2011).
Ao cruzar dos
cento e vinte minutos de transmissão, retomamos a noveleta “The
Gnarly Man” (1939), de L. Sprague de Camp, outro ponto alto de Neanderthals.[5] Nessa trama, uma paleoantropóloga algo
ninfomaníaca tropeça num espécime neandertal clássico que trabalhava como
homem-macaco num pequeno circo dos horrores de uma daquelas feiras de
variedades tão comuns nos EUA das décadas de 1930 e 40. Ao comprovar a
autenticidade do espécime, a cientista descobre que a criatura possui cerca de
cinquenta mil anos de idade. Os trechos mais divertidos da noveleta são os
comentários, ora espirituosos, ora depreciativos, que o neandertal tece sobre a
ascensão cultural de seus primos sapiens sapiens. Um
cirurgião notório e inescrupuloso se oferece para reparar algumas fraturas do
neandertal, consolidadas de forma incorreta ao longo dos milênios. Porém, em
verdade, o médico pretende descobrir todos os segredos metabólicos e anatômicos
do espécime, mediante uma pequena autópsia de seu crânio.
Essa narrativa
do Sprague de Camp fez com que Carlos se lembrasse de uma HQ antológica sobre
outro neandertaloide imortal, que seria o homem mais feio do mundo. Aventura publicada
na revista Kripta, “Nunca é Muito Tempo”, sem nos perdermos em spoilers
desnecessários, basta dizer aqui que a moral última dessa HQ é que “não há nada
tão ruim que não possa piorar”.
A partir de
uma ilustração que Edgar mostrou da edição brasileira da Martin Mystère,
mostrando um neandertal musculosíssimo ao lado de uma neandertal com linhas anatômicas
modernas, comentei que algumas espécies mamíferas apresentam dimorfismo sexual
mais pronunciado do que outras. Entre os tigres, por exemplo, machos e fêmeas possuem
tamanhos e aparências semelhantes, similaridades que já não ocorrem entre leões
e leoas, não obstante a proximidade genética entre essas duas espécies de felídeos.
Também entre os gorilas e os orangotangos, os machos são bem maiores do que as
fêmeas. Daí, é admissível conceber que, entre os neandertais, eles pudessem ser
muito maiores do que elas.
Já eram
decorridos cento e cinquenta minutos de sessão, quando enfim abordamos a novela
do Fábio Fernandes A Vingança da Ampulheta, que só havíamos citado de
passagem hora e meia antes. Reafirmei considerar esse trabalho publicado na
antologia Intempol: uma antologia de contos sobre viagens no tempo (Ano-Luz,
2000), organizada por Octavio Aragão, a melhor abordagem de personagem
neandertal na literatura fantástica lusófona. Daí, sim, pudemos dedicar uns bons
minutos ao Dualai, antagonista neandertal de A Vingança da Ampulheta.
Capa da edição capa dura da coletânea Primeiros
Humanos, que reúne as narrativas do
U.F. Astronautas
Paleolíticos e o ensaio “Neandertais na Literatura Fantástica”.
* *
*
Trecho de “Neandertais na Literatura Fantástica:
A Vingança da Ampulheta de
Fábio Fernandes não constitui história alternativa propriamente dita, mas
antes, um trabalho de ficção científica com fortes elementos de história
alternativa; como costumam ser, aliás, vários dos trabalhos que descrevem os
esforços e as peripécias de agentes das patrulhas temporais para preservar a
integridade de nossa linha histórica (NLH).
Justo nesse proposito de manter a NLH nos trilhos corretos,
banindo todas as linhas históricas alternativas e pontos de divergência indesejáveis,
é que os agentes da Intempol “colidem” com Dualai, um cronoterrorista de origem
misteriosa, que surge nos locais mais inesperados; sobretudo naqueles
vulneráveis a divergências significativas, capazes de obliterar a história e a
própria realidade “tais como nos as conhecemos”.
Só que Dualai não é um mero cronoterrorista, o tipo motivado por
ideais políticos equivocados ou por simples loucura. É antes um crononauta
neandertal, talvez o último dessa estirpe, sobrevivente do genocídio provocado
pela humanidade anatomicamente moderna tão só pelo fato de ter estado em
trânsito temporal quando o holocausto se abateu sobre seu povo.
Ao tentar reverter a situação, restaurando sua própria linha
histórica, apagada pela ação da Intempol, ou, quando não o consegue e decide se
vingar dos exterminadores de sua gente, Dualai se transforma não em mero cronoterrorista,
mas num guerrilheiro temporal, que luta de forma desesperada e insana pela
sobrevivência da sua cultura.
A Vingança da Ampulheta é uma
novela instigante, de enredo complexo e movimentado. Sua trama repleta de
reviravoltas admite a hipótese de se assumir a presença de Dualai como um
elemento menor, uma pitada de tempero adicional num prato em si já saboroso. É
possível que seja assim. No entanto, também é possível que Dualai seja mais do
que isto.
Em primeiro lugar, Dualai é de longe o personagem neandertal mais interessante
e mais bem estruturado da ficção científica lusófona. Uma figura vívida e
estimulante, ainda mais quando levamos em conta o quão tímida e imatura costuma
ser a abordagem do alienígena, do robô ou, em termos genéricos, do outro
na FC lusófona em geral e na brasileira em particular, sobretudo,
quando comparada com o que se faz no mundo extralusófono.
Em segundo lugar, a ideia instigante e original do conflito entre
duas linhas históricas antagônicas – uma neandertal e a outra habitada por
humanos anatomicamente modernos – abriga um potencial tremendo, do qual poderá germinar
não um simples romance, mas todo um universo ficcional repleto de multilogias,
haja vista o exemplo da trilogia do autor canadense Robert J. Sawyer, The Neanderthal Parallax.
Em sua essência, a proposta de Fernandes é ainda mais ambiciosa
que a de Sawyer. Porque A Vingança da Ampulheta não nos fala apenas do
contato entre duas linhas históricas, habitadas por espécies humanas distintas.
Pelo que se depreende da leitura da novela, havia originalmente duas culturas tecnológicas,
a nossa e a neandertal. Ambas capazes de viajar no tempo. Num belo dia, uma
delas – a nossa, representada no enredo pelos agentes da Intempol – regressa
dezenas de milênios ao passado e elimina a civilização rival no nascedouro.
* *
*
Aos cento e
sessenta minutos do certame, recomendei muito brevemente a série de ficção científica
La Brea, atualmente veiculada na Globoplay. Brevemente, porque,
conquanto instigante, até aonde eu assisti, a série não tem nada a ver com
neandertais.
Abordamos não
tão brevemente, o romance Devoradores de Mortos (Rocco, 1998) do Michael
Crichton, em que um grupo de guerreiros vikings combate uma tribo de humanoides
no norte da Europa que parecem muito com neandertais.
Ao fim da sessão,
a pedido do Paulo Elache, falamos um pouco do Prêmio Argos. Edgar ofereceu seu
canal para veicular a próxima cerimônia de entrega da premiação.
Dioberto indagou
se havia alguma obra de FC que aborde os denisovianos. Respondi que, ao que eu
soubesse, não. Porém, existem abordagem de outros hominídeos não humanos, como,
por exemplo, o romance Ancient of Days (Arbor House, 1985), de Michael
Bishop, um triângulo amoroso divertido entre um marido enganado, uma esposa que
sabe o que quer e um Homo habilis.[6] Também lembrei o romance fix-up de história natural
alternativa escrito pelo Harry Turtledove, A Different Flesh (Worldwide,
1989), em que as Américas não são habitadas pelos povos originários, mas sim
pelo Homo erectus.
Já no apagar
das luzes, aventamos a possibilidade de uma live sobre a trilogia da terraformização
de Marte do Kim Stanley Robinson. Só que descobrimos que nenhum dos quatro havia
lido qualquer dos três livros. De forma que, antes, precisaremos fazer nossos
deveres de casa. Também aventamos a possibilidade de analisarmos o romance polêmico
Aurora do mesmo autor.
Enfim,
despedimo-nos, primeiro da plateia e então uns dos outros, após duzentos e
cinco minutos de transmissão. Um dos meus assuntos prediletos, numa sessão de discussão
excelente. Que venham outras!
Ao fim, depois
que eu e Edgar nos desconectamos, Carlos e Paulo ficaram falando sozinhos por
mais de um minuto. Não participei desse papo, mas suspeito que tenham falado
sobre Perry Rhodan!😊
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 18 de agosto de 2023 (sexta-feira).
Participantes:
Carlos Relva.
Cláudia
Quevedo Lodi
Dioberto
Souza.
Edgar Smaniotto.
Fabrício Jacob
(autor de Homo tempus)
Gerson Lodi-Ribeiro.
Hidemberg Alves
da Frota.
Paulo Elache
Duarte.
Ricardo Mendonça
[1]. Fusão de dois ensaios anteriores, publicados há coisa
de duas décadas, “Neandertais na Ficção Científica” (Somnium nº 86 – setembro
2002) e “Neandertais na História Alternativa” (Megalon nº 66 – setembro 2002).
[2]. Coletânea composta pela novela Variedade Glabra
e os contos “Os Últimos Humanos” e “Fênix Ri por Último”, para além do ensaio
supracitado.
[3]. Só agora, no processo de escrever esta crônica, recordei
ter lido a noveleta “O Garotinho Feio” de Isaac Asimov – sobre uma criança neandertal
trazida ao presente por uma máquina do tempo – em 1975, na coletânea do autor, Nove
Amanhãs (Expressão e Cultura, 1973), quase uma década antes de estabelecer
contato literário com Knurly.
[4]. Nanorresenha do meu bunker de dados: Ayla, a Filha
das Cavernas – Romance pré-histórico por excelência. Primeiro romance da
saga pré-histórica de Ayla, uma criança cro-magnon criada por uma tribo de
neandertais, após uma catástrofe natural que vitimou seus semelhantes. Aos
cinco anos, Ayla já sabia falar. Mas os neandertais de Auel não possuem linguagem
articulada. Comunicam-se através de um conjunto de gestos e trejeitos
complexos, complementados por uns poucos grunhidos. Portanto, a criança é
obrigada a aprender a se comunicar com sua tribo adotiva e, assim fazendo,
acaba se esquecendo não apenas da linguagem de seu povo, como das memórias de
sua primeira infância que haviam culminado na perda traumática de seus pais. Ayla
é adotada por Iza, a curandeira da tribo e irmã de Creb, o Mog-ur (sumo
sacerdote) não apenas daquela tribo, mas de todas as tribos componentes do Clã
do Urso da Caverna, que é como os neandertais designam sua própria subespécie. Brun,
chefe da tribo e irmão tanto de Iza quanto do Mog-ur, deixa-se convencer a
permitir que a garota seja adotada por seu povo. Só que os problemas de adaptação
de Ayla perturbam não apenas a felicidade da jovem, mas a própria paz de
espírito da tribo. O funcionamento da mente dos neandertais de Auel é muito
diferente do funcionamento da mente dos humanos modernos. Pelo formato do
crânio neandertal, sabemos que, embora o cérebro daquela subespécie fosse um
pouco maior do que o dos humanos modernos, nele os lobos frontais eram bem
menos desenvolvidos do que em nós, ao passo que os lobos parietais eram
proporcionalmente mais desenvolvidos. Ora, de acordo com a visão neurológica
tradicional, os lobos frontais, onde reside o neocórtex, é a sede do pensamento
abstrato e, portanto, da linguagem articulada, a qual, segundo Auel, constitui
atributo exclusivo dos humanos modernos. Por outro lado, os lobos parietais são
considerados a sede da memória. De acordo com a autora, o desenvolvimento exacerbado
dessa região do cérebro nos neandertais lhes concederia uma espécie de memória
racial, o que lhes permitiria transmitir experiências geneticamente através das
gerações. Claro está que essa falácia pseudocientífica da herança de caracteres
adquiridos contraria frontalmente a Teoria da Evolução de Darwin. Ao ser
adotada por uma curandeira, ao se tornar adulta, Ayla deveria se tornar uma
também. Só que, ao contrário de uma criança neandertal que fosse filha genética
de Iza, Ayla não possui as memórias genéticas de antigas curandeiras da tribo e,
por isso, deve aprender todo o nobre e difícil ofício a partir do zero. Um fato
que a ajuda, contudo, é sua notável capacidade de abstração, que lhe permite
apreender novos conceitos e conhecimentos muito mais rápido do que um indivíduo
neandertalense. Do ponto de vista dos neandertais, Ayla é incrivelmente feia. E,
para piorar as coisas, ela não consegue obedecer os homens da tribo de modo tão
automático quanto o fazem as outras mulheres. Chega até mesmo ao ponto de
desafiar as tradições veneráveis do Clã do Urso das Cavernas, assumindo papéis
sociais exclusivamente masculinos. Ayla, a Filha das Cavernas é um
romance maciço: quase quinhentas páginas impressas em tipo pequeno. Pela quantidade
de pesquisa que a autora fez e pelo nível de detalhe que emprega, imagino que
tenha sido uma obra bastante difícil de escrever. Há trechos em que o romance
flui bem; há outros, porém, em que a leitura se torna um tanto ou quanto
maçante. No todo, é um romance que vale à pena ser conferido, sobretudo se você
é daqueles leitores que curte paleontologia e antropologia, tanto física quanto
cultural. Quando do lançamento de A Oeste do Éden, o autor estadunidense
Frank M. Robinson saudou esse romance de Harry Harrison como sendo: “O Clã
do Urso das Cavernas para pessoas inteligentes”... Independentemente das
qualidades superiores desse clássico da história natural alternativa, não é
demérito algum apreciar a leitura de Ayla, a Filha das Cavernas, muito
pelo contrário. Esse primeiro romance conquistou enorme sucesso no exterior e
um relativo êxito comercial no Brasil (meu exemplar é a 3ª edição da Record),
dando origem a quatro continuações, que dão prosseguimento às aventuras de Ayla:
O Vale dos Cavalos; Caçadores de Mamutes; Planície de Passagem;
e O Abrigo de Pedra.
[5]. Essa antologia temática reuniu algumas das melhores
histórias do gênero sobre neandertais até a época em que foi publicada. Inclui:
“Neanderthal Man” (introdução de Isaac Asimov);
“Genesis” [H. Beam Piper];
“The Ugly Little Boy” [Isaac Asimov];
“The Long Remembering” [Poul Anderson];
“The Apotheosis of Ki” [Mirian Allen deFord];
“Man o' Dreams” [Will McMorrow];
“The Treasure of Odirex” [Charles Sheffield];
“The Ogre” [Avram Davidson];
“Alas, Poor Yorick” [Thomas A. Easton];
“The Gnarly Man” [L. Sprague de Camp];
“The Hairy Parents” [A. Bertram Chandler];
“The Alley Man” [Philip José Farmer];
“The Valley of Neander” (ensaio de divulgação Científica de Robert
Silverberg).
[6]. Romance constituído pelo fix-up de três novelas:
“Her Habiline Husband”; “His Heroic Heart” e “Heritor’s Home”. Desventuras de
quarentão estadunidense sulista bom caráter, ainda apaixonado pela ex-esposa,
que se vê trocado por um exemplar do Homo habilis que aparece no sítio
de sua ex. A primeira novela fala do início do romance de RuthClaire com o habilino
Adam Montaraz e da reação da cidadezinha da Geórgia onde residem. A segunda
trata do casamento de Ruth e Adam, das carreiras artísticas de ambos e do sequestro
do filho do casal. A terceira e última novela fala do retorno de Adam à Ilha de
Montaraz e a descoberta dos últimos remanescentes dos habilinos no
Novo Mundo.