segunda-feira, 21 de setembro de 2020

 

Estranho numa

Terra Estranha

no Vórtice Rio

 

202009210830P2 — 21.990 D.V.

 

“Ler ficção científica é ler Simak.  O leitor que não gosta dos contos de Simak não gosta de ficção científica.”

[Robert A. Heinlein em discurso proferido na cerimônia de premiação de Clifford D. Simak como Grand Master Nebula em 1977]

 

Realizamos anteontem à tarde nossa quinta reunião do Vórtice Rio sob a égide da Covid-19.[1]  Iniciei o evento com pontualidade carioca às 15h00.  Como o bate-papo estava animado, convocamos três outras etapas (pois a sessão do Zoom gratuito dura apenas meia hora, com uma tolerância adicional de dez minutos) e o encontro durou quase até as dezoito horas.

Desta vez todos os outros cinco participantes conseguiram se conectar em questão de cinco ou dez minutos.  Compareceram à reunião, por ordem de chegada (ao que eu me lembre): Ricardo França; Adílson Júnior; Luiz Felipe Vasques; Juliana Berlim; e Daniel Russell Ribas.  Além disso, contamos com a presença de um consultor especialmente convidado, Daniel Braga, responsável pelo canal do YouTube, O Canto do Gárgula, que compareceu na quarta e última etapa do evento para indicar narrativas de horror literário que analisaremos no mês que vem.

O romance escolhido para setembro foi Estranho numa Terra Estranha (1961), de Robert A. Heinlein.  Alguns de nós leram a edição da Artenova (1973), traduzida por José Sanz.  Outros leram a edição da Aleph (2017), com tradução de Edmo Suassuna.  Em 1976, li esse romance na edição da Artenova, que conservo comigo até hoje.  Quarenta e quatro anos mais tarde, reli na edição da Aleph, para essa discussão do Vórtice.



          

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Abrimos a reunião debatendo se Robert A. Heinlein seria um liberal anarquista, adepto do amor livre, capaz de escrever Estranho numa Terra Estranha (1961)[2], romance cult, que se tornou uma espécie de Bíblia da contracultura norte-americana da década de 1960 em geral e do movimento hippie em particular; ou um autor militarista e conservador, capaz de escrever Tropas Estelares (1959), publicado apenas dois anos antes.  Ou, quem sabe, Heinlein não era bem uma coisa e nem outra, mas só um escritor danado de bom?  Esse enigma é parcialmente respondido no material não ficcional incluído ao fim da edição da Aleph, onde a longa gênese de Estranho numa Terra Estranha é detalhada.  O manuscrito teria sido concluído mais de uma década antes de sua publicação original.  Heinlein não o publicou ao longo da década de 1950 porque não havia clima político e cultural para a crítica e o público leitor aceitarem o romance.

Só para provocar meus amigos, declarei que a melhor frase jamais proferida por Heinlein foi ouvida no discurso em que ele homenageou Clifford D. Simak quando esse autor recebeu a premiação Grand Master Nebula, concedida pela Science Fiction and Fantasy Writers of América (SFWA) em 1977.  O próprio Heinlein fora o primeiro escritor a ser agraciado com essa honraria em 1975.  Jack Williamson foi o segundo e Clifford D. Simak, o terceiro.  Como alguns dos mais novos só conheciam o Simak de ouvirem falar, recomendei a leitura de seu romance Way Station (1963) e do fix-up City (1952), além de sugerir a série de dezesseis volumes, catorze dos quais já publicados, The Complete Short Fiction of Clifford D. Simak, e lhes ofereci para fornecer duas crônicas pessoais não publicadas que escrevi sobre os contos e noveletas dessas catorze coletâneas já publicadas.

Porém, voltando ao Heinlein, debatemos se Estranho numa Terra Estranha seria ficção científica genuína, fantasia científica, ou simplesmente fantasia, conforme alegado na capa da edição brasileira publicada pela Artenova.  Advoguei o argumento de que a natureza dos poderes paranormais ou psiônicos do protagonista Valentine Michael Smith — um órfão humano criado por marcianos — parecia mais mágica do que científica.  Sobretudo, se levarmos em conta a tese heinleiniana, segundo a qual humanos poderiam adquirir tais poderes com facilidade, bastando para tanto, aprenderem o idioma marciano.  Meus amigos lembraram de Louise Banks, protagonista do filme A Chegada (2016) de Denis Villeneuve, inspirado na novela História da Sua Vida (2002) do Ted Chiang, que aprende a visualizar passado, presente e futuro como uma coisa só, ao aprender a pensar no idioma de uma civilização alienígena que visitava a Terra.  Rebati que aprender a enxergar o fluxo espaçotemporal de uma outra maneira ao aprender a pensar de forma diversa, graças a um idioma alienígena não é o mesmo que ser capaz de ler pensamentos alheios, mover objetos à distância, ou se teletransportar.  Além disso, Heinlein propõe a existência de vida após a morte no bom e velho estilo judaico-cristão, com anjos, inclusive, o que, por si só, talvez já caracterize o romance como fantasia.

Tal discussão nos conduziu a outra, mais geral: O que é ficção científica, afinal?  Com o consequente cotejo das mais diversas definições da FC.  Lembrei um caso hilário de um sócio paulistano do Clube de Leitores de Ficção Científica da década de 1980, que insistia que Branca de Neve e os Sete Anões era FC porque a protagonista ficava em “suspensão animada” (SIC).  Piedosos, outros sócios esclareceram ao incauto que: 1) era “animação suspensa”; 2) “suspensão animada” talvez fosse uma tecnologia automotiva avançada, que andava sendo experimentada na Fórmula 1; e 3) o fato de exibir uns poucos tropos típicos da ficção científica não faz, por si só, que a narrativa se torne FC.

Um dos participantes da reunião de anteontem, não lembro qual, comentou que, em novembro 2016, o SyFy Channel anunciou que produziria uma adaptação do Estranho numa Terra Estranha.  De lá para cá, ao que me consta, não há novidades nesse front.

Também discutimos discordâncias entre as traduções de Sanz e Suassuna.  Por exemplo, quando o personagem Jubal Harshaw, alter ego de Heinlein, desejava convocar uma das suas três ou quatro secretárias, empregava sempre o mesmo bordão:

— Front!

Na tradução da Artenova, José Sanz empregou:

— Seguinte!

Ao passo que Edmo Suassuna usou:

— À frente!

Já na edição portuguesa da Europa-América (1982), a tradutora Luisa Rodrigues adotou a solução fastidiosa, porém tecnicamente correta, conquanto descompromissada com a proposta semântica do autor, ao converter a exclamação em pergunta:

— Quem é que está de serviço?

 

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Além da discussão do romance de setembro, conversamos um bocado sobre os bastidores do II Encontro de Ficção Científica e Ensino de Ciências, simpósio semanal, organizado pela professora Anunciata Sawada e pelo Adílson Júnior sob os auspícios da FIOCRUZ, que tem ido ao ar pelo YouTube todas as quintas-feiras às 19h00.

Bastidores por bastidores, Juliana comentou que a apresentação do Dia 1 do II Encontro, que apresentei junto com Rômulo Ferreira, já estava com mais de duas mil e duzentas visualizações.  Além disso, esclareceu os motivos do atraso da apresentação que ela própria participou no Dia 3 do Encontro.  Comentamos e elogiamos a premiação do Projeto Clube de Leitores Neuromancers — tema da apresentação dela — na categoria Ensino Médio do Prêmio Paulo Freire 2019.  Ela nunca nos falara dessa premiação e só soubemos do fato quando a moderadora do Dia 3 leu o currículo dela para nós...

*     *      *

 

Na última etapa deste encontro mensal, pudemos contar com a presença egrégia de Daniel Braga, responsável pelo canal O Canto do Gárgula, dedicado à literatura de horror.  Daniel compareceu atendendo ao pedido do Luiz Felipe Vasques, para sugerir livros para lermos para a reunião do mês que vem, uma vez que outubro é originalmente o mês consagrado ao horror literário no Vórtice Rio.  Dentre as várias sugestões pertinentes, selecionamos a noveleta O Balé das Aves Mortas (Skript, 2019) de Larissa Prado e Quarto 502 (Selo Covil, 2016) de M. Sardini.  Duas autoras brasileiras, portanto.  Até porque, como diz o Ancelmo Gois, “Halloween é o cacete!”  Embora tenhamos ficado balançados pelo fix-up Território Lovecraft do Matt Ruff, resolvemos deixar esse título, também descrito pelo Daniel, para uma próxima oportunidade.





Por volta das 18h00, enfim encerramos a quarta e última etapa desse que foi, em minha opinião, o encontro mais divertido desta nossa fase digital.

Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2020 (segunda-feira).

 


Participantes:

Adílson Júnior.

Daniel Russell Ribas.

Gerson Lodi-Ribeiro.

Juliana Berlim.

Luiz Felipe Vasques.

Ricardo França.

Daniel Braga, de O Canto do Gárgula (consultor especialmente convidado).

 



[1].  Em nosso primeiro encontro digital (maio), destrinchamos os romances Encontro com Rama (1973) de Arthur C. Clarke e Os Testamentos (Rocco, 2019) de Margaret Atwood.  No segundo (junho), analisamos a novela O Auto da Maga Josefa (Dame Blanche, 2018) de Paola Siviero.  No terceiro (julho), foi a vez do romance seminal, Frankenstein (1818) de Mary Shelley.  No penúltimo encontro (agosto), debatemos o romance bestseller Ártemis (Arqueiro, 2019) de Andy Weir.

[2].  Nanorresenha extraída do meu bunker de dados: Estranho numa Terra Estranha – Humano criado por marcianos inicia revolução social numa Terra cuja ética fora há muito degradada.  Sátira e alegoria deliciosas, bem ao estilo do autor.  Cultbook de uma geração.  Isto posto, o alter ego de Heinlein, Jubal Harshaw, é o falastrão mais pretensioso jamais criado pela ficção científica literária.

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