Estranho
numa
Terra Estranha
no Vórtice Rio
202009210830P2 — 21.990 D.V.
“Ler ficção científica
é ler Simak. O leitor que não gosta dos
contos de Simak não gosta de ficção científica.”
[Robert A. Heinlein em discurso proferido
na cerimônia de premiação de Clifford D. Simak como Grand Master Nebula em 1977]
Realizamos anteontem
à tarde nossa quinta reunião do Vórtice Rio sob a égide da Covid-19.[1] Iniciei o evento com pontualidade carioca às
15h00. Como o bate-papo estava animado,
convocamos três outras etapas (pois a sessão do Zoom gratuito dura apenas meia
hora, com uma tolerância adicional de dez minutos) e o encontro durou quase até
as dezoito horas.
Desta vez
todos os outros cinco participantes conseguiram se conectar em questão de cinco
ou dez minutos. Compareceram à reunião,
por ordem de chegada (ao que eu me lembre): Ricardo França; Adílson Júnior; Luiz
Felipe Vasques; Juliana Berlim; e Daniel Russell Ribas. Além disso, contamos com a presença de um
consultor especialmente convidado, Daniel Braga, responsável pelo canal do YouTube,
O Canto do Gárgula, que compareceu na quarta e última etapa do evento
para indicar narrativas de horror literário que analisaremos no mês que vem.
O romance
escolhido para setembro foi Estranho numa Terra Estranha (1961), de
Robert A. Heinlein. Alguns de nós leram a
edição da Artenova (1973), traduzida por José Sanz. Outros leram a edição da Aleph (2017), com tradução
de Edmo Suassuna. Em 1976, li esse romance
na edição da Artenova, que conservo comigo até hoje. Quarenta e quatro anos mais tarde, reli na edição
da Aleph, para essa discussão do Vórtice.
Abrimos a reunião
debatendo se Robert A. Heinlein seria um liberal anarquista, adepto do amor
livre, capaz de escrever Estranho numa Terra Estranha (1961)[2],
romance cult, que se tornou uma espécie de Bíblia da contracultura norte-americana
da década de 1960 em geral e do movimento hippie em particular; ou um autor
militarista e conservador, capaz de escrever Tropas Estelares (1959), publicado
apenas dois anos antes. Ou, quem sabe, Heinlein
não era bem uma coisa e nem outra, mas só um escritor danado de bom? Esse enigma é parcialmente respondido no
material não ficcional incluído ao fim da edição da Aleph, onde a longa gênese de
Estranho numa Terra Estranha é detalhada. O manuscrito teria sido concluído mais de uma
década antes de sua publicação original.
Heinlein não o publicou ao longo da década de 1950 porque não havia
clima político e cultural para a crítica e o público leitor aceitarem o romance.
Só para
provocar meus amigos, declarei que a melhor frase jamais proferida por Heinlein
foi ouvida no discurso em que ele homenageou Clifford D. Simak quando esse
autor recebeu a premiação Grand Master Nebula, concedida pela Science Fiction and
Fantasy Writers of América (SFWA) em 1977.
O próprio Heinlein fora o primeiro escritor a ser agraciado com essa
honraria em 1975. Jack Williamson foi o
segundo e Clifford D. Simak, o terceiro. Como alguns dos mais novos só conheciam o Simak
de ouvirem falar, recomendei a leitura de seu romance Way Station (1963)
e do fix-up City (1952), além de sugerir a série de dezesseis volumes, catorze
dos quais já publicados, The Complete
Short Fiction of Clifford D. Simak, e lhes ofereci para fornecer duas
crônicas pessoais não publicadas que escrevi sobre os contos e noveletas dessas
catorze coletâneas já publicadas.
Porém,
voltando ao Heinlein, debatemos se Estranho numa Terra Estranha seria ficção
científica genuína, fantasia científica, ou simplesmente fantasia, conforme
alegado na capa da edição brasileira publicada pela Artenova. Advoguei o argumento de que a natureza dos
poderes paranormais ou psiônicos do protagonista Valentine Michael Smith — um órfão
humano criado por marcianos — parecia mais mágica do que científica. Sobretudo, se levarmos em conta a tese
heinleiniana, segundo a qual humanos poderiam adquirir tais poderes com
facilidade, bastando para tanto, aprenderem o idioma marciano. Meus amigos lembraram de Louise Banks,
protagonista do filme A Chegada (2016) de Denis Villeneuve, inspirado na
novela História da Sua Vida (2002) do Ted Chiang, que aprende a visualizar
passado, presente e futuro como uma coisa só, ao aprender a pensar no idioma de
uma civilização alienígena que visitava a Terra. Rebati que aprender a enxergar o fluxo
espaçotemporal de uma outra maneira ao aprender a pensar de forma diversa,
graças a um idioma alienígena não é o mesmo que ser capaz de ler pensamentos
alheios, mover objetos à distância, ou se teletransportar. Além disso, Heinlein propõe a existência de
vida após a morte no bom e velho estilo judaico-cristão, com anjos, inclusive,
o que, por si só, talvez já caracterize o romance como fantasia.
Tal discussão
nos conduziu a outra, mais geral: O que é ficção científica, afinal? Com o consequente cotejo das mais diversas definições
da FC. Lembrei um caso hilário de um sócio
paulistano do Clube de Leitores de Ficção Científica da década de 1980, que
insistia que Branca de Neve e os Sete Anões era FC porque a protagonista
ficava em “suspensão animada” (SIC). Piedosos,
outros sócios esclareceram ao incauto que: 1) era “animação suspensa”; 2) “suspensão
animada” talvez fosse uma tecnologia automotiva avançada, que andava sendo
experimentada na Fórmula 1; e 3) o fato de exibir uns poucos tropos típicos da ficção
científica não faz, por si só, que a narrativa se torne FC.
Um dos
participantes da reunião de anteontem, não lembro qual, comentou que, em novembro
2016, o SyFy Channel anunciou que produziria uma adaptação do Estranho numa
Terra Estranha. De lá para cá, ao
que me consta, não há novidades nesse front.
Também discutimos
discordâncias entre as traduções de Sanz e Suassuna. Por exemplo, quando o personagem Jubal Harshaw,
alter ego de Heinlein, desejava convocar uma das suas três ou quatro secretárias,
empregava sempre o mesmo bordão:
— Front!
Na tradução da
Artenova, José Sanz empregou:
— Seguinte!
Ao passo que
Edmo Suassuna usou:
— À frente!
Já na edição portuguesa
da Europa-América (1982), a tradutora Luisa Rodrigues adotou a solução fastidiosa,
porém tecnicamente correta, conquanto descompromissada com a proposta semântica
do autor, ao converter a exclamação em pergunta:
— Quem é que
está de serviço?
* * *
Além da discussão
do romance de setembro, conversamos um bocado sobre os bastidores do II
Encontro de Ficção Científica e Ensino de Ciências, simpósio semanal, organizado
pela professora Anunciata Sawada e pelo Adílson Júnior sob os auspícios da FIOCRUZ,
que tem ido ao ar pelo YouTube todas as quintas-feiras às 19h00.
Bastidores por
bastidores, Juliana comentou que a apresentação do Dia 1 do II Encontro, que
apresentei junto com Rômulo Ferreira, já estava com mais de duas mil e duzentas
visualizações. Além disso, esclareceu os
motivos do atraso da apresentação que ela própria participou no Dia 3 do Encontro. Comentamos e elogiamos a premiação do Projeto
Clube de Leitores Neuromancers — tema da apresentação dela — na categoria Ensino
Médio do Prêmio Paulo Freire 2019. Ela nunca
nos falara dessa premiação e só soubemos do fato quando a moderadora do Dia 3
leu o currículo dela para nós...
* *
*
Na última etapa
deste encontro mensal, pudemos contar com a presença egrégia de Daniel Braga, responsável
pelo canal O Canto do Gárgula, dedicado à literatura de horror. Daniel compareceu atendendo ao pedido do Luiz
Felipe Vasques, para sugerir livros para lermos para a reunião do mês que vem, uma
vez que outubro é originalmente o mês consagrado ao horror literário no Vórtice
Rio. Dentre as várias sugestões pertinentes,
selecionamos a noveleta O Balé das Aves Mortas (Skript, 2019) de Larissa
Prado e Quarto 502 (Selo Covil, 2016) de M. Sardini. Duas autoras brasileiras, portanto. Até porque, como diz o Ancelmo Gois, “Halloween
é o cacete!” Embora tenhamos ficado
balançados pelo fix-up Território Lovecraft do Matt Ruff, resolvemos
deixar esse título, também descrito pelo Daniel, para uma próxima oportunidade.
Por volta das
18h00, enfim encerramos a quarta e última etapa desse que foi, em minha opinião,
o encontro mais divertido desta nossa fase digital.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2020 (segunda-feira).
Participantes:
Adílson Júnior.
Daniel Russell Ribas.
Gerson
Lodi-Ribeiro.
Juliana Berlim.
Luiz Felipe Vasques.
Ricardo França.
Daniel Braga,
de O Canto do Gárgula (consultor especialmente convidado).
[1]. Em nosso primeiro
encontro digital (maio), destrinchamos os romances Encontro com Rama (1973)
de Arthur C. Clarke e Os Testamentos (Rocco, 2019) de Margaret Atwood. No segundo (junho), analisamos a novela O
Auto da Maga Josefa (Dame Blanche, 2018) de Paola Siviero. No terceiro (julho), foi a vez do romance seminal,
Frankenstein (1818) de Mary Shelley.
No penúltimo encontro (agosto), debatemos o romance bestseller Ártemis
(Arqueiro, 2019) de Andy Weir.
[2]. Nanorresenha extraída
do meu bunker de dados: Estranho numa Terra Estranha – Humano criado por
marcianos inicia revolução social numa Terra cuja ética fora há muito
degradada. Sátira e alegoria deliciosas,
bem ao estilo do autor. Cultbook de uma
geração. Isto posto, o alter ego de
Heinlein, Jubal Harshaw, é o falastrão mais pretensioso jamais criado pela
ficção científica literária.
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