Guerra Sem Fim no Vórtice Rio.
201909072359P7 — 21.610 D.V.
“The war is hell.”
(William T. Sherman)
Compareci
hoje à tarde à reunião mensal de agosto do grupo de discussão em literatura
fantástica, Vórtice Rio. A reunião
deveria ter ocorrido no sábado passado, 31 de agosto. Porém, como ninguém pôde comparecer, adiamos
de comum acordo para o sábado seguinte, ou seja, hoje. O trabalho escolhido para análise no mês de
agosto foi o romance clássico de ficção científica militar, Guerra sem Fim (The Forever War), do Joe Haldeman, publicado inúmeras vezes em
inglês e pelo menos três vezes em português (ao que me conste, uma vez em
Portugal e duas no Brasil).
O adiamento
se deu, sobretudo, em função da Bienal.
Sim. Estamos em época de Bienal do Livro do Rio de
Janeiro e, nesta última semana do certame, surgiu uma polêmica espúria inusitada,
motivada por estratégias eleitoreiras rasteiras, iniciada pela tentativa de apreensão
de um romance gráfico da Marvel, disparada pelo prefeito do Rio, Marcelo
Crivella, que enviou, por pelo menos duas vezes, fiscais municipais para
apreender a publicação, que todos sabiam esgotada já nas primeiras horas da
polêmica, uma vez que o lançamento brasileiro original se dera em 2016 e a
editora nem mandara tantos exemplares assim para seu estande na Bienal. Depois da tradicional guerra de liminares,
com direito à escalada ao STF, e da reação dos movimentos LGBT, do youtuber
Felipe Neto e da sociedade organizada em geral contra a barbárie fundamentalista,
Crivella foi proibido de proibir a venda do exemplar já esgotado.
Acompanhando
essa polêmica de longe, segui o roteiro programado de ônibus e metrô, saltando
na estação Botafogo e ali embarcando para o Centro, para participar da reunião
que aconteceria, como de hábito, no segundo piso do Centro Cultural da Caixa
Econômica Federal, na Avenida Almirante Barroso, quase esquina com a Rio
Branco. Leitura de bordo: segunda edição
do The History of Science Fiction (Palgrave MacMillan, 2016) do Adam
Roberts. Aliás, desisti de ler a edição brasileira
pelo simples fato de que não aguento mais esbarrar com “novel” (“romance”
em inglês) sendo impunemente traduzido por “novela”.
Cheguei lá às
15h00, com pontualidade mais britânica do que carioca.
* *
*
Ricardo
França já estava por lá quando ingressei no salão gigantesco situado no térreo
do CC-CEF. Conversamos um pouco sobre as
teses do Roberts quanto à gênese da ficção científica moderna. Ele falou que havia lido The Forever War
há muito tempo e que não tivera tempo de reler o romance para a reunião de hoje.
Pouco depois
chegava Renata da Conceição e eu lhe passei o exemplar de meu romance de
história alternativa Aventuras do Vampiro de Palmares (Draco, 2014) que
ela havia pedido para dar de presente.
Uma vez autografado o livro, voltamos a falar das teses do Roberts, mas
também comentamos a questão da censura homofóbica do Crivella na Bienal e da
pechincha que encontrei por lá: uma coletânea reunindo toda a ficção curta de
George R.R. Martin por vinte reais.
Por volta das
15h30, subimos ao segundo andar do centro cultural, onde costumamos fazer
nossas reuniões mensais.
* *
*
Enquanto
esperávamos a chegada do Daniel Russell Ribas, que se afirmou disposto a
participar de sua primeira sessão oficial no Vórtice[1],
Renata contou que havia finalmente entregue sua dissertação de mestrado e que
fará a defesa nos próximos dias. Falou
também de sua vontade de lecionar (ela é graduada e em breve será mestra em
História) e que deverá prestar concurso em breve para dar aulas no ensino médio
da rede pública municipal e/ou estadual.
Numa espécie
de esquenta da reunião, repassamos a
história de publicação do The Forever War. O romance foi serializado a partir de 1971 na
revista norte-americana Analog Science
Fact & Fiction, então sob a direção do Ben Bova. Em 1974 foi publicado como romance e recebeu
os prêmios Hugo e Nebula em 1975.
Voltando a
serialização: quando da publicação da noveleta correspondente ao regresso do
protagonista William Mandella à Terra no início do século XXI — como veterano
da campanha contra os alienígenas tauranos — Bova pediu que Haldeman
reescrevesse o trabalho, pois o autor pintara um cenário bastante distópico
para a Terra de 2007. Nas cidades as
pessoas não podiam sair de casa sem guarda-costas, todos os cidadãos andavam
armados e mais da metade da população não tinha emprego, embora o governo
sustentasse os desempregados em níveis acima da miséria. Bova alegou que essa Terra distópica
deprimiria um bocado os leitores da revista, sobretudo pela associação imediata
que eles fariam com o regresso dos veteranos da Guerra do Vietnam, então em
curso. Haldeman aquiesceu e produziu uma
noveleta menos distópica, que acabou sendo publicada na Analog.
Quando Haldeman
reuniu suas novelas e noveletas para a publicação do romance, manteve a narrativa
açucarada da Terra do início do século XXI.
Nessa versão, o romance foi agraciado com o Hugo, o Nebula e um punhado
de outras premiações. A edição impressa
de The Forever War (Easton Press,
1987) que tenho em casa contém essa noveleta light. Contudo, nas edições
publicadas a partir de meados da década de 1990, Haldeman substituiu versão
açucarada pela distópica, escrita originalmente, que ele preferia, levando o
romance à versão que ele considera definitiva.
A edição digital do The Forever
War (Ridan, 2011) que reli para a discussão de hoje, contém não só a versão
definitiva do romance, como também introduções do autor e dos editores,
esclarecendo essa história de publicação tortuosa e, mais importante, o
prefácio de John Scalzi, autor de A
Guerra do Velho (2005)[2],
onde esse último autor esclarece uma velha polêmica ao afirmar que finalmente
leu The Forever War e jurar de pés
juntos pela enésima-quarta vez que não havia lido o clássico de Haldeman antes
de escrever seu romance. Como diria o
Jack Palance, “Acredite, se quiser.”
Edição britânica da coleção SF Masterworks.
Edição digital norte-americana da Ridan (2011).
Por volta das
16h00 o Daniel Ribas chegou e eu lhe passei um exemplar da antologia Dinossauros (Draco, 2016) que organizei
há tempos. Após ele me pagar e eu
autografar o livro, enfim, iniciamos a fase oficial da reunião.
Daniel Russell Ribas, Ricardo França e GL-R
(Foto de Renata da Conceição).
* *
*
Depois de
repassarmos brevemente a história de publicação do romance e as premiações que
ele recebeu na década de 1970, Daniel levantou as dificuldades que encontrou
com a tradução da edição que leu: Guerra
sem Fim (Landscape, 2009). Como eu,
Renata e França havíamos lido o romance em inglês, ele esclareceu: a estrela
gigante vermelha Albebaran (Alpha Tauri) foi traduzida como “Aldebarão”, em vez
da forma correta em português, “Aldebarã”.
As superbombas de efeito catalítico, “Nova bombs” no original, viraram
“bombas-novas”. E por aí vai... De qualquer forma, vale a pena frisar que, em
primeiro lugar, a Landscape já fechou as portas. Em segundo lugar, tais erros e más escolhas nada
têm a ver com a tradução brasileira mais recente: Guerra sem Fim (Aleph, 2019), recomendada pelo Vórtice para a
sessão de agosto.
Edição brasileira da Landscape (2009).
Edição brasileira da Aleph (2019).
Edição portuguesa.
Em seguida,
destrinchamos o mecanismo de deslocamento interestelar proposto por
Haldeman. Saltos de centenas ou até
milhares de anos-luz através de colapsares (supostamente buracos negros)
conduzem as naves humanas e tauranas de um ponto a outro da Via Láctea e até a
Grande Nuvem de Magalhães (uma galáxia-satélite da nossa) instantaneamente, ou quase. Já os deslocamentos entre um colapsar e o
seguinte se dão pelo espaçotempo normal a velocidades muito próximas à da luz. É justamente esses deslocamentos pelo
einsteiniano que provocam a dilatação temporal: enquanto se passam meses a
bordo das naves estelares que conduzem os combatentes para o engajamento
seguinte, passam-se décadas ou séculos na Terra.
A cada
regresso da frente de combate, os soldados se sentem mais deslocados na
sociedade humana do futuro remoto cujos cidadãos os tratam como heróis, mas não
os compreendem e, sobretudo, não os aceitam como eles são. As práticas e costumes sociais mudam ao longo
dos séculos e os veteranos não se encaixam mais na vida civil, restando-lhes,
portanto, apenas se realistar e regressar ao front.
Dos três
grandes clássicos da ficção científica militar, Tropas Estelares (1959)[3] de
Robert A. Heinlein; Guerra sem Fim
(1974); e Guerra do Velho (2005) de
John Scalzi, o romance de Joe Haldeman – escrito por um veterano da Guerra do
Vietnam e não um civil, como os outros dois autores – é o único que pode ser
considerado como um libelo antimilitarista e uma ode em louvor à inutilidade da
guerra.
The Forever War teve uma continuação de
verdade, Forever Free (1999)[4]
e uma de mentirinha, Forever Peace
(1997). A de mentirinha não se passa no
mesmo universo ficcional que o do clássico aclamado. Trata-se da narrativa de uma guerra travada na
Terra entre robôs controlados remotamente por militares das nações
desenvolvidas contra movimentos guerrilheiros dos países pobres. Já a de verdade, começa exatamente onde o
clássico termina, no planeta Dedo Médio, onde Mandella, Marygay e outros
veteranos da Guerra Eterna resolveram residir após o fim do conflito.
* *
*
Ao término da
sessão, cerca de 17h30, Renata se despediu de nós e partiu em companhia do
namorado, Pedro, que havia se juntado a nós meia hora antes. Dez ou quinze minutos mais tarde, nosso amigo
Luiz Felipe Vasques chegava ao centro cultural direto da Bienal para participar
do que restava do evento. Retomamos a
discussão e permanecemos no CC-CEF até as 18h30 ou mais tarde.
À noitinha, nós
quatro caminhamos até a estação Carioca do metrô e embarcamos no sentido Jardim
Oceânico. Durante a viagem, Felipe e
Ribas detalharam a trama de uma série de horror vampírico da qual eu já lera a
respeito: What We Do in the Shadows. Senti-me animado para assistir, porém, ao
chegar em casa, descobri que não está disponível no Netflix e, na NET, está
sendo exibida no canal Fox Premium, não disponível em nosso pacote. Como já considero a assinatura NET demasiado
cara pelo que ela oferece, não pretendo adicionar mais um canal por conta de
uma única atração. Cedo ou tarde, essa
série aparecerá noutro veículo ou canal.
Assim espero.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 07 de setembro de 2019 (sábado).
Participantes:
Daniel Russell
Ribas.
Gerson Lodi-Ribeiro.
Luiz Felipe Vasques.
Renata Aquino da Conceição.
Pedro.
Ricardo França.
[1]. Ribas participou informalmente
de parte da reunião que fizemos em outubro do ano passado nos jardins do
Palácio do Catete, por ocasião da Primavera dos Livros 2018, quando discutimos
o romance de horror Hex (Darkside, 2018), do autor holandês Thomas Olde
Hevelt.
[2]. Nanorresenha extraída do meu
bunker de dados: Guerra do Velho (2005) – Viúvo sênior ingressa nas
Forças de Defesa Colonial ao completar 75 anos, abdicando da cidadania terrestre,
tornando-se um recruta e recebendo um corpo jovem repleto de aperfeiçoamentos
genéticos, para ajudá-lo a combater as potências alienígenas que ameaçam a
diáspora humana na periferia galáctica. Scalzi
estabelece um diálogo profícuo com Heinlein (Tropas Estelares); Haldeman
(The Forever War) e Simak (“The Civilization Game”), mas comete alguns
pecadilhos e incide em diversos clichês do gênero. No todo, um enredo instigante, divertido e
original com personagens extremamente bem construídos.
[3]. Outra nanorresenha: Tropas
Estelares (1959) – Clássico da ficção científica militar e apologia patriótica
sob a forma de ficção. Visão pessoal de um
fuzileiro espacial durante guerra contra alienígenas insetoides. Heinlein em sua obra mais polêmica.
[4]. Forever
Free (1999) – Continuação do romance clássico The Forever War. William Mandela, a esposa Marygay Potter e
outros veteranos da Guerra Eterna contra os tauranos colonizam o planeta gelado
Middle Finger sob os auspícios de uma humanidade pós-singularidade, que se
transformou em mente coletiva. Cansado
do paternalismo dessa mente suprema, Mandela lidera uma minoria de
inconformados numa viagem estelar de ida e volta para lugar algum, disposta a
retornar à região da periferia habitada pela humanidade e pelos tauranos
somente após quarenta milênios.
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