segunda-feira, 5 de agosto de 2019


Beraldo in Rio:
Império de Diamante no Vórtice Rio.

201908032359P7 — 21.575 D.V.

“Quando o monarca imortal do Império de Diamante é ferido em batalha, a situação se desintegra e a maior potência de Myambe, o continente original da humanidade, recolhe-se dentro de si mesma, propiciando revoltas por todo o império.  Neste cenário de crise, um quarteto de mercenários desempenha várias façanhas, sempre visando o lucro, porém, inadvertidamente, influindo de forma decisiva no futuro do império.”


Hoje foi dia da reunião mensal do grupo de discussão especializado em literatura fantástica Vórtice Rio.  Só que não foi uma reunião normal, mas sim nossa homenagem anual ao autor fantástico brasileiro.[1]
João Beraldo aceitou nosso convite para falar um pouco de seu romance premiado Império de Diamante.  Embora tenha sido realizada hoje, por conveniência de datas e horários, esta foi a nossa reunião mensal de julho.  No fim do mês nos reuniremos de novo para discutir outro texto do fantástico nacional.
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Tomei um busão aqui em casa e saltei na livraria Travessa, junto à estação de metrô Botafogo, para me encontrar com o amigo Luiz Felipe Vasques.  Dali pedimos um UBER que nos deixou na rodoviária Novo Rio com uma bela meia hora de antecedência em relação ao horário estimado para a chegada do Beraldo.  Enquanto aguardávamos o autor homenageado, conversamos sobre corrupção nas esferas municipal e federal, dando nomes aos bois, e analisamos as questões científicas inovadoras subjacentes nos enredos dos romances Blindsight (2006) e Echopraxia (2014), ambos do Peter Watts, que constituem a duologia Firefall.  Concordamos que, embora as ideias desse autor sejam geniais  — de vampiros científicos que evoluem e se extinguem pelas leis da seleção natural, só para serem recriados pelas artes da gengenharia de fins do século XXI até o primeiro contato traumático da humanidade com alienígenas inteligentes, mas desprovidos de autoconsciência — o andamento das duas narrativas é um tanto arrastado.
Beraldo desembarcou na Novo Rio dez minutos antes do horário previsto de 13h00.  Dali caminhamos por uns cinquenta ou setenta metros, até a estação Rodoviária do VLT e embarcamos na linha com destino ao aeroporto Santos Dumont.  Coisa de meia hora mais tarde, após um passeio aprazível e algo turístico (não obstante o tempo feioso) por regiões antigas (algumas das quais revitalizadas) do Rio, desembarcávamos na Avenida Rio Branco, próximo ao Edifício Avenida Central.  Ao longo dessa viagem, conversamos sobre as séries fantásticas Penny Dreadful, As Crônicas de Frankenstein e a sensacional minissérie britânica de ficção científica política, Years and Years, que estou assistindo e recomendo com o máximo empenho, pois é atualíssima em relação aos últimos acontecimentos políticos brasileiros, britânicos e norte-americanos.
Dirigimo-nos ao Avenida Central sob uma chuvinha fina nesta tarde nublada de inverno.  Lá encontramos o esperado restaurante ainda aberto em plena tarde de sábado, ocorrência relativamente incomum no Centro da Cidade.  Depois de uma análise acurada das opções gastronômicas do cardápio, nós três acabamos resolvendo pelo mesmo prato, espaguete à parisiense (com molho branco, frango desfiado, bacon, champignon e gratinado), que se revelou simples, saboroso e na quantidade certa.  Ainda no quesito coincidências, eu e Felipe descobrimos que estávamos com o mesmo título em nossas mochilas, A Verdadeira História da Ficção Científica (Pensamento-Cultrix, 2018), do Adam Roberts.  Conversamos um bocado sobre as teses heterodoxas desse autor e estudioso quanto à origem histórica do gênero e a qualidade da tradução presente para o português.  Tópicos candentes que nos levaram à própria definição do que seria ficção científica.  Também especulamos sobre as prováveis diferenças cognitivas existentes entre neandertais e humanos anatomicamente modernos e sobre as contribuições genéticas que herdamos desses nossos primos extintos.
Saímos do restaurante rumo ao Centro Cultural da Caixa Econômica Federal, um quarteirão distante do Avenida Central, por volta das 14h45, pois Ricardo França e Juliana Berlim haviam postado que já se encontravam no local.
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Foi um evento em petit committee, pois vários membros tradicionais assíduos — como Renata Aquino, Flora Pinheiro, Adilson Júnior e Diego de Souza — não pudessem comparecer.  Mesmo assim, como todas as reuniões do Vórtice em que se discutiu a obra com o autor presente, esta reunião de julho em agosto para abordar Império de Diamante, do J.M. Beraldo, foi de alto nível e uma das mais saborosas de que participei nestes últimos quatro anos.
Demos início aos trabalhos assim que Mayra Braga chegou ao CC-CEF.  Embora Beraldo já fosse conhecido da maioria dos presentes, como rezam as tradições da vorticidade, falei um pouco do autor, lembrando a ocasião em que o conheci, durante a Semana Jules Verne, patrocinada pela PUC-RJ em 2005; da época em que trabalhávamos juntos no departamento de universo ficcional da Hoplon Infotainment, na elaboração do jogo massivo online Taikodom; de seus romances de ficção científica Véu da Verdade (Eridanus, 2005)[2] e Taikodom: Despertar (Devir, 2008)[3]; e do universo ficcional de fantasia que se iniciou com o romance abordado este mês.
Com a palavra, Beraldo delineou os passos para o estabelecimento desse U.F. Reinos Eternos, caminhada iniciada no fim da década passada, época em que ele ainda residia em Florianópolis e trabalhava na Hoplon.  Falou do mapa instigante que ilustra a edição impressa do romance.  Neste ponto, Mayra lamentou que o mapa não se expandia legal na edição em ebook do seu Kindle.  Beraldo também destacou os estudos da historiografia dos povos africanos que precisou empreender para escrever o romance, bem como os elementos indianos e asiáticos presentes nas narrativas desse U.F.  Ainda deu uma palinha sobre os dois romances que se seguem a esse primeiro, Último Refúgio (Draco, 2016), finalista ao Argos 2017 na categoria melhor romance, e o terceiro livro, ainda sem título definitivo, no prelo da mesma editora.  Embora ainda não tenha lido esses dois romances, por conversas com o autor, tanto em certames anteriores quanto hoje à tarde, percebi que, ao contrário do que ocorre em Império de Diamante, nessas narrativas a ação é ambientada noutros continentes que não Myambe.
Em sua primeira participação no Vórtice, Luiz Felipe conduziu o papo para um de seus objetos de estudo favoritos, a questão do worldbuilding, aplicada ao Reinos Eternos.  Provocação que nos levou a comparar esse universo ficcional a vários outros da fantasia, dentre os quais a Terra Média, de J.R.R. Tolkien, e a Canção de Gelo e Fogo, do George R.R. Martin.  Tais comparações nos levaram a abordar o paradigma do iceberg em termos de conteúdo do universo ficcional: nove décimos dos elementos desenvolvidos para enriquecer a narrativa deveriam ser mantidos não só no background, mas, de preferência, fora no texto publicado.
Beraldo nos contou sobre seus trabalhos passados e atuais na indústria de jogos digitais, falou-se um bocado de RPG, Dungeons & Dragons e outros que tais.  Também conversamos bastante sobre a adaptação de romances para filmes e séries, o que nos conduziu, naturalmente, às já legendárias diatribes de Stephen King e Alan Moore.  Citei que a adaptação mais perfeita e enxuta que já vi foi a do romance A Mulher do Viajante no Tempo (original: 2003; edição brasileira: Objetiva, 2009), da Audrey Niffenegger, no filme homônimo de 2009, lançado no Brasil sob o título piegas de Te Amarei para Sempre.  Aliás, a narrativa de viagem temporal mais bem amarrada que já li e assisti.  Falamos também dos pitacos do King nas capas das edições brasileiras de seus livros.  Discorremos por alguns (ou muitos) minutos sobre a crise do mercado editorial brasileiro e o fenômeno de logística Amazon Brasil, sobretudo no que tange à literatura fantástica nacional.
Por volta das 18h30 começamos a nos movimentar para encerrar o evento.  Porém, todos sabem como esses bate-papos hipersuperanimados sobre narrativas fantásticas custam a perder o embalo: deixamos o segundo piso do centro cultural, mas levamos uma boa meia nas despedidas junto à porta do prédio da CEF.  Ali, o papo divagou para aqueles autores que escrevem ficção científica mas não se assumem como escritores do gênero, inspirado por nossa escolha para a leitura de dezembro próximo, o romance de história alternativa, Máquinas como Eu (Companhia das Letras, 2019), do Ian McEwan.  Daí, Felipe lembrou do Kurt Vonnegut e eu da Doris Lessing, nobelista e autora da série Canopus em Argos.  Daí, citei que o melhor texto que já li dessa autora não tem nada a ver com literatura fantástica.  É a novela The Grandmothers (2003), publicada no Brasil pela Companhia das Letras em 2013, por ocasião do lançamento do filme nela baseado Amor sem Pecado (título original: Adoration).  É a história pungente e bem escrita de duas mulheres australianas, amigas de infância que, nutrindo uma paixão recolhida mútua, tornam-se amantes uma do filho adolescente da outra, em relacionamentos cadentes que o quarteto mantém durante uma década e meia, até os rapazes se casarem e se tornarem pais (daí o título do romance), em meio à vida tranquila de uma cidadezinha praiana do sul da Austrália.

Mayra Braga, Juliana Berlim, Luiz Felipe Vasques, João Marcelo Beraldo, Ricardo França.

Felipe, Juliana, GL-R, Beraldo, Mayra, Ricardo França (recurso tecnológico da "mãozinha").



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Em torno das 19h00, já estávamos caminhando pela Rio Branco, quando Beraldo verificou que seu embarque para São Paulo não seria às 20h00, mas sim, às 19h30 e que, portanto, não seria viável seguir para a rodoviária de VLT, ainda mais porque a próxima composição só passaria dentro em dez minutos.  Felizmente, havia um táxi vazio dando sopa na esquina da Rio Branco com a Almirante Barroso.  Ele logrou pegar esse táxi e embarcar no ônibus rumo a Sampa, segundo soubemos pelo WhatsApp, “por um triz”.
Na vinda para casa de metrô, Felipe me contou nuances e detalhes de uma série de ficção científica instigante, Humans: um presente alternativo em que as pessoas já contam com androides nos lares e no trabalho para executar as tarefas que humano orgânico algum se disporia a fazer.  Fiquei muito interessado em assistir as três temporadas dessa série (2015, 2017 e 2018, vinte e quatro episódios no total). Saltando do metrô na estação Botafogo, tomei o ônibus da integração para o Jardim Botânico.  Nessa segunda perna do regresso para casa, retomei a leitura de A Verdadeira História da Ficção CientíficaQuando cheguei em casa, procurei no IMDb, no NOW e no Netflix, mas, ao que parece, não está disponível.  Tentarei baixá-los da internet.
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 03 de agosto de 2019 (sábado).




Participantes:
Gerson Lodi-Ribeiro.
João Marcelo Beraldo.
Juliana Berlim.
Luiz Felipe Vasques.
Mayra Braga.
Ricardo França.




[1].  Na verdade, era para ser anual, mas, desde 2015 até hoje, só conseguimos fazer três dessas homenagens: na primeira, em julho de 2015, eu fui o convidado, com Aventuras do Vampiro de Palmares (Draco, 2014) e acabei ingressando nesse grupo de discussão.  Na segunda, em agosto de 2016, convidamos o Alexey Dodsworth, com Esplendor (Draco, 2016).  Finalmente, hoje, recebemos o João Marcelo Beraldo para discutir Império de Diamante (Draco, 2015).  Reparem que esses dois últimos trabalhos se sagraram vencedores na categoria Melhor Romance do Prêmio Argos, respectivamente, em 2017 e 2016.
[2].  Resenha registrada em meu bunker de dados (livros lidos): “Em universo ficcional onde os humanos são os párias da periferia galáctica, nave estelar obsoleta tripulada por humanos e alienígenas trafega pelos sistemas próximos conduzindo cargas e passageiros e se metendo em encrencas, enquanto o pau come entre as diversas potências terrestres e um caçador de recompensas com poderes paranormais anda à caça do comandante da nave (leitura concluída em 26 de março de 2006).
[3].  Idem acima: Primeiro romance da Coleção Taikodom com histórias, enredos, ambientações e personagens do universo ficcional desenvolvido para a Hoplon Infotainment para o MSG homônimo.  Narrativa de dois pilotos brasileiros da União do Centro colocados sob animação suspensa pouco após a Restrição da Terra, que despertam 150 anos mais tarde e são obrigados a se adaptar ao presente hipertecnológico do Taikodom, tomando partidos antagônicos no período formativo do Consortium.  Introdução, orelhas e quarta capa escritos por Gerson Lodi-Ribeiro (leitura concluída em 07 de novembro de 2008).